SlideShare uma empresa Scribd logo
Rodrigues(1999) afirma que, até o século IX, a elite participava da cultura “popular” 11 ,
e esta muito pouco tinha a ver com a cultura romana ou cristã. Entrelaçavam-se práticas
e crenças que carregavam sem si origens longínquas, tramadas a partir dos ritos e mitos
pagãos . Independente de classe social, todas as pessoas acreditavam numa magia
existente no mundo, não havia uma distinção, ou instrumentos para fazer a distinção, do
real e do imaginário, do possível e do impossível, do mito e da razão. Tudo era
possível: as magias para o bem e para o mal; bruxos; mal olhados, pragas, espíritos da
floresta...

          O mundo era mágico, os dialetos locais eram as línguas que teciam, através da
tradição oral, o presente e que lançavam o futuro através das transmissões diretas de
geração a geração. Nós espaços de convivência social( a rua, as casas, os mercados, as
tabernas, praças, rinhas de galos, rodas de jogos, de música ou dança, as igrejas
paroquiais) estavam o padre, o nobre, o artesão, o mercador e o camponês. Os
alfabetizados liam, quase sempre, em voz alta, para um público de pessoas analfabetas
ou pouco alfabetizadas, os mesmos textos e livros que circulavam em outros espaços
sociais.


          Na outra ponta desta rede que tece a formação de certas maneiras de fazer e de
sermos vemos surgir a economia mercantil nas cidades e as comunas. As comunas eram
organizações gestoras não hegemonizadas pelo clero ou pela nobreza, mas com a
participação de artesões e de mercadores que viviam nas terras do rei, pagavam tributos
e eram protegidos por seus cavaleiros. Vivendo um mundo distinto do mundo dos
castelos e
_______________________
11 A essa cultura do homem cotidiano costuma-se dar o nome de popular. Não vejo grandes razões para implicar com tal
designação, já de certo modo consagrada nos meios acadêmicos e fora destes, no entanto, talvez seja necessário observar que o
termo carrega um quê de anacrônico, quando remetido ao contexto medieval. É que, rigorosamente, a idéia de povo não fará sentido
pleno senão em períodos históricos bastante posteriores – por volta do século XVIII – quando a separação entre povo e elite ter-se-à
configurado com bastante nitidez, e quando as fronteiras entre as várias culturas do povo e as culturas de elite(também variadas)
terão começado a ser mais significativas do que as relações e interpenetrações que apresentavam. (Rodrigues, 1999:36).



dos mosteiros, estes homens e mulheres também produziram uma cultura e o
aparecimento dos mestres livres, clérigos ou leigos, que ensinavam a quem desejasse
aprender, se articulou com os anseios e desejos das elites comunais.


          É possível, assim, identificar também , no entrechoque de forças dos príncipes
emergentes, do clero, das corporações de artes e ofícios e da burguesia mercantilista,
algumas das transformações que produzirão quebras nas imagens-memórias do mundo
medieval.


       Nas cidades medievais, por exemplo, o urbano e o rural eram invadidos um pelo
outro, pois da janela de uma casa da cidade via-se o campo e bastava subir a colina para
avistar uma torre da cidade. Homens, plantas e animais se misturavam nas feiras, e os
muros que circundavam as cidades tinham uma função muito mais simbólica de
demarcação de fronteiras e de defesa do que de definição de identidade social. Em toda
cidade havia quem cultivasse hortas, jardins, pomares, bem como existiam pastos,
paióis, celeiros e estábulos. As ruas medievais eram, para nossos padrões de hoje,
ruidosas, estreitas e fedorentas, mas eram imensamente atraentes, pois representavam
um espaço de comunicação, onde se partilhava a vida, o trabalho, o lazer. Não havia a
oposição entre o espaço privado, que é a residência, e o público, como hoje nós
percebemos (Rodrigues, 1999).


       O corpo era identificado como o lugar simbólico no qual se constituía a própria
condição humana e, mesmo depois da morte, era em forma de corpo que se “via” o
morto. A morte não significava algo necessariamente ruim, pois além de se conviver
com ela muito de perto – morria-se muito – era considerada um grande sono.
                      Dormir até o dia do Grande Despertar, ocasião em que
              praticamente toda a comunidade humana surgir- de corpo e alma – de
              seus túmulos particulares ou coletivos, para continuar a vida em maior
              proximidade do Criador, dos mártires, dos anjos, dos santos... O sono da
              morte representava apenas uma espécie de espera pelo dia do glorioso
              reerguer coletivo, grande festa comunitária de que deveriam estar
              excluídos, talvez, apenas os suicidas, os hereges, os regicidas, os
              sacrílegos (Rodrigues, 1999:62).

       Entre os séculos X e XIII surgem os homens livres, as Universidades e a
Inquisição. O poder religioso e o poder real se imbricam e a Inquisição será um
instrumento de poder e de saber, voltando para a produção de um consenso em torno de
uma cultura para a fé, tendo como marca a identificação dos pecadores e hereges para
puni-los, especialmente aqueles que apresentassem oposições aos saberes e poderes da
Igreja e do Estado.

       Iniciam-se algumas transformações na configuração feudal européia, pois, com o
crescimento das atividades comerciais, o limite entre a cidade e o campo passa a ser
mais fortemente marcado. As cidades assumem o papel de centros comerciais e
culturais, de criação e difusão de riquezas e de histórias, de narrações e contos sobre
terras distantes e povos diferentes. A ampliação das atividades mercantis e o incremento
das práticas manufatureiras provocam a imaginação e a vontade de conhecer. Esta se
trama com o surgimento de alguns clérigos e estudiosos que, nem sempre diretamente
ligados à Igreja, são recebidos nas comunas e incentivados a permanecerem.


       No final da Idade Média, a Igreja intensificou sua atuação como agente
educativo e de instrução nas cidades. Buscando a salvação das almas, ela fez
intervenções nas expressões culturais locais. As tavernas e as feiras viviam
constantemente cheias de viajantes, entre eles, religiosos, prontos a contar histórias de
outras crenças, de outras formas de viver. A igreja desejava um maior controle sobre
essas imagens-memórias circulantes.
       Surgiram nas cidades as corporações de artes e ofícios. Nos seus estatutos
apareciam normas que regulavam não somente as relações externas de artes e ofícios
com o poder público e com o mercado, mas também as relações internas entre os
trabalhadores, que podiam ser mestres, sócios, aprendizes e também diaristas
assalariados. Nas corporações podia-se aprender saberes práticos.


       É importante destacar que essas se constituíram a partir da iniciativa dos
próprios artesões, e que em seus estatutos havia a previsão de uma maior dependência
do discípulo em relação ao mestre, ao contrário do que ocorria nas universidades
medievais. Manacorda (1996) nos conta que
                     em geral, as artes sórdidas não expressaram, nem sistematizaram
              e nem tornaram pública a sua ciência. E ademais: seus protagonistas
              sempre tiveram como cultura os fragmentos da ideologia das classes
              dominantes, que os acultuavam, e só algumas migalhas de instrução
              formal do ler, escrever e fazer contas. Mas, logo teremos de prestar
              maior atenção também ao surgimento de uma cultura mais orgânica dos
              produtores (p.167)
19



          Anciões e aprendizes distinguiam-se dentro das corporações, pois, enquanto um
era chamado de “magistri”, o outro era o “discipuli”. Os jovens aprendiam na “escola do
trabalho conjunto” com os adultos e, para que isso ocorresse, havia um contrato entre o
pai do jovem e o mestre. O sistema de produção realizado dentro de casa, com o auxílio
da família e de alguns agregados, derivou da forma de produção desenvolvida na Idade
Média.Tudo o que era consumido naquele período era feito em casa pela própria
família. Os camponeses eram responsáveis pela fabricação de bens de consumo em todo
o seu processo.


          Uma outra questão marcante e que diferenciava a Idade Média da Modernidade
refere-se à dimensão da temporalidade. A hora de acordar ou de dormir estava ligada
diretamente às estações do ano e à luz produzida pelo sol. Havia uma interpenetração da
vinda secular e da clerical nas cidades, visto que as horas eram marcadas pelos sinos de
um
______________
19 imagem - No início da produção manufatureira, o artesão trabalhava em casa e lá mesmo vendia seus produtos. Nesta iluminura
de Jean du Ries, de 1482, vemos o trabalho de um carpinteiro e de um canteiro sob a vigia de um representante real. 20a imagem
-Uma das características da produção de bens na Idade Média era o trabalho familiar, como podemos ver nesta iluminura do século
XVI. 20b Santo Agostinho séc. IV e V .21 Aristóteles.22 a idade média 22b Maquiavel



mosteiro. Comparado ao mundo moderno, o tempo vivido medieval era largo e as horas
de trabalho se interpenetravam com as horas das refeições e do lazer
20a      20b




       Entre os séculos IV e V, Santo Agostinho fez algumas reflexões sobre o tempo,
e o dividiu em três: presente, passado e futuro. O tempo agostiniano é abordado a partir
da explicação do princípio do Gênesis, e sua análise caminhava fundada na essência
religiosa de uma filosofia teísta, que nos salta aos olhos ao ler o “livro XI: o homem e o
tempo”. O autor teceu a relação entre tempo, Deus e a criação do mundo e, quando faz a
discussão sobre o que fazia Deus antes da criação do mundo, opta por dizer que não
sabe, embora afirme logo a seguir:
                       Mas eu digo, meu Deus, que sois o Criador de tudo, o que foi
               criado. Se pelo nome de “céu e terra” se compreendem todas as
               criaturas, não temo afirmar que antes de criardes o céu e a terra não
               fazíeis coisa alguma. Pois, se tivésseis feito alguma coisa, que poderia
               ser senão criatura vossa? (Santo Agostinho, 1996:320)

       As imagens teocêntricas de tempo e de universo se articulavam como
conhecimentos guardados nos corredores, bibliotecas e salas dos mosteiros cristãos.
Não havia uma concepção de tempo seriado na vida humana. A divisão etária, como
hoje a conhecemos, não fazia parte das imagens do mundo medieval. Conta-nos Áries
(1981) que, até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não
tentava representa-la (p.50), pois, nas representações de jovens e crianças, presentes em
diferentes lugares, estes aparecem como adultos em miniatura. Sua compleição, a
rigidez muscular e as feições eram representadas como as de um adulto, porém em
escala menor. A educação das crianças se dava na convivência com os adultos, em que
os saberes deveriam fortalecer o corpo, aguçar os sentidos, habilitar corpo e alma para
superar os reveses da sorte e gerar novos filhos, assegurando a continuidade da família.
O sentido da infância não trazia em si o significado de afetividade ou uma
interpretação das particularidades e diferenças inerentes a esta faixa etária como hoje a
vivemos. Na verdade, o que era determinado como infância relacionava-se mais com a
possibilidade de sobrevivência do que com as características próprias, pois            a
mortalidade infantil era muito alta. Somente após uma determinada fase da vida do
sujeito é que se identificava mais objetivamente aquele ser como participante do mundo,
como “alguém com quem se poderia contar”. Essa passagem se dava mais ou menos
quando a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou ama
e, a partir, ela ingressa na sociedade dos adultos e já não se distinguia destes (Áries,
1981)


        Nas universidades os conteúdos de ensino baseavam-se na análise de temas
conexos à Filosofia, Teologia e aos conhecimentos sobre a natureza. A imagem que
organizava a leitura do mundo passava necessariamente por uma concepção teísta, pois
os que ousavam questionar as verdades já estabelecidas pela Igreja enfrentavam os
caminhos inquisitórios. A igreja manteve seu controle sobre as universidades. Em 1215,
por exemplo, na Universidade de Paris, é proibida, pelo Legado do Papa, a leitura da
Metafisica e da Física de Aristóteles. Pouco depois o papa Gregório IX rompeu mesmo
a integridade dos textos, mandando extrair edições expurgadas de afirmações contrárias
aos seus dogmas(Manacorda, 1996).




                                                           21


        As universidades foram se formando pelo afluxo de estudantes e de professores
de diversas cidades; havia os “vagantes”, os licenciados dos mosteiros e os laicos 12.
Entre os vagantes honestos, existiam aqueles que, para sobreviver e pagar seus estudos,
lecionavam e até lavavam a roupa de seus estudantes(manacorda, 1996). Havia também
alguns estudantes de vida errantes que escreviam em latim versos soltos de cunho
satírico, em geral critica social e que, por, vezes, se dedicavam a função de jogral ou
teatro para ganhar a vida, levando os tempos de universidades mais para os
divertimentos licenciosos do que era considerado estudo “sério”.




                                                                   22 Mestres Idade Média


       Em algumas cidades os mestres livres criavam escolas e davam aulas aos
interessados que pagavam, a um aluno, indicado pelo professor, que realizava a coleta.
Destaco aqui a figura de Abelardo22, cuja fama corria fora dos limites franceses e que,
após afastar-se da Universidade de Paris, instalou-se no monte Sainte-Geneviéve. Hoje
este é considerado o primeiro núcleo de universidade livre na França e tornou-se o
maior centro de cultura sagrada e profana, para o qual ocorria a mais seleta juventude
estudiosa de toda a Europa (Reale, 1990:511).


       Misturado ao povo, os mestres-estudantes nem sempre recebiam por seus
ensinamentos. A relação com a cidade hospedeira era conflituosa. Havia o interesse da
elite política e financeira em fixar grupos de estudiosos sem seus domínios, mas havia
também os problemas de convivência com os goliardos13 que , apesar de sua atuação
explosiva e combatida com dureza pelas autoridades locais, produziram uma
diversidade de poesias e cantos que muito tem ajudado aos pesquisadores a
compreender um pouco mais as imagens-memórias dominantes da época. Um bom
exemplo são os versos da coletânea Carmina Burana, que falam de mulheres, vinho,
caça desesperada ao dinheiro, conflitos com os mestres e os cidadãos ( Manacorda,
196:147).
Os mestres livres, para protegerem-se, em alguns lugares, constituíram associações
semelhantes às corporações de artes e ofícios, que eram juridicamente reconhecidas e
tinham como objetivo dar assistência aos seus membros e tutelar os interesses comuns,
tanto dos doutores como da cidade hospedeira. Nobres e burguesia mercantil, entre
contradições e enlaces, davam apoio político e financeiro para que grupos de
professores permanecessem na cidade. A igreja mantinha uma espécie de supervisão
através da concessão, com exame prévio dos títulos de estudo e de autorização para
ensinar. Assim, conclui Manacorda (1996), nota-se uma continuidade ininterrupta, pelo
menos na direção política, entre                        escolas episcopais e                  universidades (p.150), e
também uma ruptura, pois o
contato daqueles mestres com o mundo, que acontecia fora dos mosteiros e das
universidades controladas pela igreja, criava tensões constantes tanto nos limites da
cultura clerical, como na cultura do restante da sociedade.
______________
12 Entre os professores laicos dessa época temos Pedro de Abelardo, cuja história é bastante conhecida. Abelardo, professor de
teologia e filosofia em Paris, foi morar na casa do cônego Fulbert. Este lhe entregou a educação da sobrinha, pois desejava que
Heloisa tivesse uma educação que o permitisse conseguir um bom dote por ocasião de suas núpcias (Abelardo, 1989).13 Os
goliardos são figuras que aparecem nesta época da história , são jovens estudantes. Revelavam-se por diferentes motivos, entrando
em conflito com os cidadãos e as autoridades da cidade. Esta rebelião, segundo Manacorda(1996), tem algo de novo para o
panorama da história.14 Literatura em vulgar era aquela escrita em latim vulgar. O latim clássico, consagrado pelas classes cultas e
pela literatura, tornou-se, com o tempo, distante da expressão falada, que aglutinava influências de ordem vária nos diversos
territórios do Império Romano, assim como variedades socioculturais, a cujo conjunto chamou latim vulgar que deu origem às
línguas românicas e nomeadamente ao português. (literatura/língua.......)
          Os mestres livres tornaram-se protagonistas da nova escola do terceiro estado
mais ou menos a partir de 1.200. Nestas, as atividades relacionavam-se com a
organização da sociedade de mercadores e artesãos que trabalhavam nas cidades
organizadas em comunas. Com estes mestres, o conteúdo do ensino se alterou e o
nascimento das literaturas em vulgar14, que se diferenciou em conteúdo e forma da
anterior, foi mais um fio na trama das transformações que vão sendo produzidas,
especialmente na Itália, na França e na Inglaterra.


Manacorda(1996) identifica nesta época, um conflito que ainda se faz presente em nossa
memória: a contradição entre a imagem de docência como sacerdócio e como comércio.
Os mestres livres não se casavam; entre outros motivos estava o fato de não poderem
assumir financeiramente sua família, pois não havia vencimentos regulares. Contudo, os
mestres de oficio garantiam, através de contratos, o pagamento em dinheiro ou em
forma de trabalhos, por seus ensinamentos, havendo a partir daí uma relação mercantil
explícita com o ensino.
A instrução vista como uma preparação profissional para as artes do “fazer”
produtivo passou a se dar voltada para a aplicação objetiva no mundo profissional. A
gramática ou as letras, por exemplo, foram assumidas em suas conexões com a
possibilidade de ampliação do comércio. As escolas de ofício se diferenciavam tanto da
educação nos mosteiros, onde a gratuidade das ciências era       um principio, pois um
dom de
Deus, como da educação dos mestres livres, na qual a relação com o conhecimento se
dava
por uma constante tensão entre o estabelecido e a vontade de interpretar de forma mais
acertada o mundo.


       Entrando nesta trama de ressignificação dos saberes, Najmanovich (2001) relata-
nos que, no século XIII, chega ao Ocidente uma nova matemática, vinda do mundo
árabe. Essa é apropriada pelos homens que
                     Estavam extremamente envolvidos no intercâmbio mercantil e na
             eficácia comercial. Para os habitantes das cidades européias dessa
             época, “contar rápido e bem era uma necessidade cotidiana (Benoit,
             1989). A vida do cidadão era o cenário onde o cálculo se foi
             convertendo em um valor indispensável para a vida” [...](p.17)
       A burguesia mercantilista, mais especialmente a italiana e a francesa, articulou
imagens-memórias do antigo e do novo tempo, tecendo o orgulho de serem mercadores
à vontade, de se parecerem com a aristocracia. Elias (1994c) nos conta que, nesta época,
começaram a aparecer, em distintos lugares, obras tratando do comportamento
“civilizado”, em que são descritas formas de comportamento e cuidados com o corpo.
Começavam a ser pintadas na corporeidade da nobreza novas e distintas marcas. Nessa
mesma época algumas comunidades passaram a assumir o pagamento de um ou dois
professores que deveriam iniciar os jovens da cidade nas letras e na matemática.


       Rodrigues(1999), tratando mais especificamente das questões do corpo, afirma
que o corpo medieval não era definido pelos músculos, pela força, pela resistência, pela
disciplina ou pela rentabilidade que poderia gerar, não era o corpo-ferramenta inventado
pela sociedade da produção. Não era propriedade privada ou um corpo consumidor, e
sim, comparativamente preguiçoso, sem grande preocupação com o tempo e com
trabalho, mais voltado para as festas e para a espera que para os empreendimentos e
investimentos (p.83). Contudo, a produção de algumas regras de convívio e a
organização da formação de pessoas para as artes e ofícios geraram novas imagens. O
corpo foi assumindo uma conotação instrumental, foi se transformando em uma
ferramenta para a produção econômica da família, da comunidade e, com o tempo, para
a manutenção do próprio indivíduo.


       No final do século XII e início do século XIV, já existia uma estrutura escolar
que ia além daquela organizada pelo clero. O número de estudantes cresceu muito e se
reunia em grupos de várias idades e de diferentes níveis de formação. Assim, os mestres
destas escolas acabavam contratando monitores ou repetidores que tinham como tarefa
ajuda-los nas aulas. Os monitores ajudavam também a manter a ordem enquanto o
mestre atendia a um determinado grupo. Os mestres livres, infiltrados no campo dos
clérigos, alteraram as formas de gestão da atividade educacional e até mesmo os
conteúdos. Manacorda (1996:174) nos conta que, em cidades como Florença, Gênova e
Milão, as associações dos mestres formaram corporações sem ligação com os collegia
doctorum ou as universitates dos studia generalia que eram organizações eclesiásticas.
       O declínio da Idade Média fez surgir também uma corporeidade especifica das
cortes, dos mosteiros, dos castelos e uma educação cavalheiresca, que convivia com a
educação do clero. Inicia-se uma transmutação na formação da nobreza. Esta vai
assumindo um caráter de preparação nas técnicas de guerra e de política, nas quais os
meninos nobres passam a ser treinados em jogos de valentia, com bolas ou varas, em
exercícios como arremesso de pedra e introduzidos nos primeiros manejos de armas, na
arte de cavalgar e na oratória. Surge um corpo cortês, governado pela formalidade, que
ficou mais ou menos cristalizado no imaginário da literatura referente aos tempos
medievais(Rodrigues,1999:83). Essa corporeidade associada à cavalaria, com seus
gestos e vestuários estudados e contidos, precavidos, disciplinados, militarmente, onde
os mínimos detalhes estão formalizados, tem sua gramática normativa e é um germe do
corpo individual. A preocupação com as maneiras corporais, com o modo de ser e o seu
controle, ganha relevância entre os nobres e os que com eles conviviam. Na França,
assim como em Portugal e Espanha, por exemplo, era comum o convívio entre os
nobres, o clero e a burguesia mercantil.


       Vai surgindo a imagem do indivíduo; algo que, durante o medievo, era
inconcebível, pois cada sujeito estava diretamente em interação com o Cosmos, com os
demais membros da família ou da aldeia. A criança, por exemplo, vivia e aprendia no
espaço comunitário e, apesar de a pessoa viver em seu próprio corpo carnal, este estava
em íntima relação de dependência com a linhagem, havia uma solidariedade de sangue.
O corpo era seu, mas era também um pouco o outro, pois se considerava um rebento do
tronco comunitário, uma parte do grande coletivo que, pelo engaste das gerações,
transcendia o tempo (Gélis,1991:312).


       Elias (1993) nos narra que, no final dos tempos medievais, se inicia a
constituição de algo que se tornará mais do que uma sociedade de corte. É uma
aristocracia de corte que se constitui, uma elite que se entranha por toda a Europa
ocidental, tendo, inicialmente, como centro Paris. Esta estruturará uma nova forma de
ser.
                     Os membros desta sociedade multiforme falavam a mesma
              linguagem em toda a Europa: inicialmente o latim e o italiano, depois o
              francês. Liam os mesmos livros, tinham os mesmos gostos, as mesmas
              maneiras e – com diferença de grau – o mesmo estilo de vida,
              submetendo-se a uma convenção muito rígida de conduta, a uma grande
              formalidade quanto à moderação dos afetos e uma regulação cada vez
              mais rigorosa das maneiras e da gestualidade. (Rodrigues,1999:34)

       A educação desta elite já não se restringirá às artes da guerra. Era necessário
saber mais do que lutar. A honra, o comportamento moral correto, tornou-se a glória do
cavaleiro e para o futuro rei e sua corte passou a ser indispensável o aprendizado das
ciências, saber ler, ser curioso conhecedor, saber caçar e ter boas maneiras
(Manacorda,1996)


       Concluindo a apresentação de alguns dos caminhos que configuraram a Idade
Média, é importante destacar a estruturação dos Estados Absolutistas, em tempos
diferentes e com suas particularidades, e as produções filosóficas, políticas, artísticas,
cientificas e técnicas inglesas, alemãs, italianas e francesas. Estas vão contribuir para
alterar radicalmente o mundo Europeu e a vida dos homens e mulheres que habitavam
aquele espaço-tempo. Perde-se a relação mágica com o mundo e seus caminhos serão
agrupados de formas diferentes, mas estarão presentes na configuração dos novos
mapas políticos e culturais que se estavam formando.




2.2 – Semelhanças, unicidade, multiplicidade e divergências
Até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel
              construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande parte,
              conduziu a exegese e a interpretação dos textos: foi ela que organizou o
              jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e
              invisíveis, guiou a arte de representa-las. O mundo enrolava-se sobre si
              mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a
              erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem. A
              pintura imitava o espaço. E a representação – fosse ela festa ou saber –
              se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal o título
              de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito
              de falar.(Foucault, 1992:33)

       Os acontecimentos que se desenvolveram no fim do século XV e início do XVI
na península Ibérica são marcantes, pois as Grandes Navegações fizeram com que se
tocassem distintos tempos e culturas, produzindo uma área híbrida contendo o hoje que
se enlaça ao amanhã e o toque entre diferentes.


       Para nós, sul-americanos e brasileiros, é importante relembrar não apenas as
grandes navegações como também o fato de Portugal e Espanha terem sido os primeiros
a se organizarem na forma do estado moderno absolutista. Portugal surgiu como reino
independente em 1139 e, até a metade do século XIII, permaneceu envolvido na luta
pela expulsão dos mouros da Península Ibérica. Da segunda metade deste século até
1325, houve uma reorganização interna e a delimitação de fronteiras. Em 1383, após a
Revolução de Avis, com a vitória de D. João, iniciou-se um novo espaço de poder para
a burguesia mercantil portuguesa.      A nobreza agrária foi submetida ao rei que,
centralizando o poder, favoreceu a expansão marítimo-comercial transformando
Portugal no primeiro país europeu a constituir um Estado absolutista e mercantilista. Na
Espanha, a partir do século XIII, só dois reinos encontravam-se em condições de
disputar a liderança cristã: o de Castela e o de Aragão. Em 1469, a rainha Isabel, de
Castela, casou-se com o rei Fernando, de Aragão, unificando politicamente a Espanha e
possibilitando a expulsão dos árabes. Fortalecido o poder real, que foi apoiado pela
Igreja e “ajudado” pela burguesia mercantil, a Espanha também se lançou ao mar.


       As Grandes Navegações criaram novos fluxos de riqueza, de deslocamentos do
homem no Planeta e recompuseram a imagem-memória de diferença. Portugal e
Espanha eram, no dizer de Holanda (1995); territórios-ponte pelos quais a Europa se
comunicava com os outros mundos, zonas de fronteira que, se eram menos carregadas
de europeísmo, se deve aos múltiplos contatos com as culturas africanas e do oriente.
Sua elite, contudo, procurava preservar-se e mantinha-se atenta aos acontecimentos
parisienses e neles também se inspirava quando lhe convinha.


       A partir do século XV, tempos em que a escola e a cultura vão se tornando parte
da trama dos novos interesses e concepções de mundo da nobreza, da burguesia
mercantil e também da Igreja, vão sendo esculpidas15 novas imagens-memórias de
conhecimento. Diferenciado das imagens presentes no período medieval, onde os livros
eram raros e caros e o aprendizado era feito com o corpo e o coração, gravando-se
apenas na memória corporal o que se devia ou não se devia fazer em sociedade, esse
período vai nos deixar como principal imprinting, uma sistematização, uma
intencionalidade mais generalizada de organização dos fazeres e dos saberes.


       Conta-nos Elias (1994c) que a sociedade e as maneiras estavam em “transição”e
que a oposição simples entre bom e mau se perdeu. Criou-se uma forte diferenciação
entre eles, e se produziu um maior controle das emoções humanas. Parece, por
exemplo, que a substância e, talvez, também os costumes da sociedade passaram por
certas mudanças nos séculos XIV e XV com ascensão das guildas de ofício e de
elementos burgueses(p.73).


              As regras e as maneiras para o trato com o outro, que passavam de boca
em boca, a partir de versos rimados ou manuscritos de sacerdotes, tomam corpo. Com a
criação da imprensa produz-se uma articulação do texto no corpo, mediante a escritura.
A ordem pensada – texto concebido – se produz em corpos – os livros – que as repetem,
formando calçamentos e caminhos, redes de racionalidade através da incoerência do
universo (Certeau, 1994:236). Assim, são apresentadas por escrito e de forma
sistematizada algumas regras de civilização.


       E Thomas Morus (1480 – 1535). De origem inglesa, esse pensador escreveu
uma notável crítica à sociedade de sua época no livro Utopia. Nicolau Maquiavel22b
(1469 – 1527). O italiano Maquiavel ganhou notoriedade por ter escrito O Príncipe, que
traça as diretrizes do poder no Estado moderno e sua corporeidade vista até nossos dias..
22b




         Erasmo de Roterdã (1466 ou 1467- 1536). Nascido nos Países Baixos, é
considerado um dos principais humanistas do renascimento. Seu texto mais conhecido é
Elogio da Loucura, no qual faz críticas contundentes aos poderes constituídos,
inclusive à Igreja Católica escreveu e divulgou seu De civilitate morum
puerilium.Voltada para a educação de crianças da elite político-cultural e dedicado ao
filho um príncipe, tornou-se um livro de referência quando veio a público em 1530. Foi
reeditado em vários países. Nele o comportamento das pessoas em sociedade, o decoro
corporal externo são tratados como parte da instrução que deveria receber o homem
livre.


         A maneira de olhar a postura ao senta-se à mesa para as refeições, os gestos, o
vestuário, as expressões faciais e o asseio corporal são alguns exemplos do que versa o
livro. Elias nos informa que
                       Com toda certeza Erasmo não compilou simplesmente esse
                tratado à vista de outros livros[...] ele tinha diante dos olhos um código
                social especial, um padrão especial de maneiras. Este tratado é, na
                verdade, uma coletânea de observações feitas na vida e na sociedade. É,
                como disse alguém mais tarde, “um pouco do trabalho de todo mundo”
                (1994c:83).


         Mas quem era esse homem livre?
         O homem humanista, nascido dentro das universidades controladas pelo clero,
rompeu seus muros e tomou como centro de sua elaboração as Academias. Estas eram
livres associações de doutos que opõem a leitura dos clássicos e as pesquisas
inovadoras às velhas repetições do saber universitário. Para eles à universidade só
restava adequar-se     ao novo curso da cultura para não decair irreversivelmente
(Manacorda, 1996:179) Uma nova imagem de homem é produzida: agora ele está no
centro do universo. A imagem teocêntrica de mundo e de conhecimento que dominava a
cultura medieval, de uma maneira geral e especialmente nos mosteiros e universidades,
vai disputar espaço com as formas emergentes.


         O humanismo retoma a leitura dos clássicos gregos e latinos gerando nos novos
intelectuais uma aversão á cultura medieval e ao tipo de escola que dominava a
educação, com seus mestres e seus castigos corporais. Era próprio do humanismo e do
renascimento a procura de uma forma mais humana e mais culta de educar a criança;
entretanto, quando se fala de criança, não se está falando de todas as crianças. Trata de
um movimento tipicamente aristocrático, dentro dos padrões de organização política dos
Estados absolutistas.


         Manocorda (1996) nos narra que as pedagogias desta época, mesmo as não
humanistas, apresentavam de forma recorrente a questão de se ter em conta a natureza
da criança. Essa “natureza” não se referia ás suas características de maturidade psíquica
ou física, mas apresenta-se como uma naturalização do seu lugar social, no qual o
“natural na nobreza16” é a dignidade, a fortuna, a bondade, a beleza, a prudência, o
juízo, enfim, os requisitos que, ainda hoje, em nossas memórias, se referem ao lado
positivo da existência.


         Nos tratados de pedagogia humanista se dava importância           á leitura dos
textos
gregos, até então ignorados ou tidos como heresias. Ganharam importância, também o
amor
pela     poesia, uma vida     em comum entre mestre e discípulo, as disputas
doutas
acompanhadas por passeios pelos campos, diversões, jogos e brincadeiras, bem como o
respeito pelos jovens. Esses elementos vão compor um quadro pedagógico para a
formação da elite, na qual as punições corporais serão excluídas. Alguns professores
procuravam que os estudos fossem feitos “como todo gosto”, utilizando-se de jogos
como método educativo. Foi retomada uma concepção de educação que ampliava o
espectro dos conteúdos a serem ensinados, que passaram a caminhar dos livros clássicos
à música, das artes aos exercícios físicos, próprios da tradição cavalheiresca. Será, no
entanto, uma educação para os homens, e, apenas, para algumas poucas mulheres,
nascidos nobres e livres.




_____________________
15 Esculpir aqui não a uso só no sentido comumente empregado de retirar para dar forma nova à matéria bruta, mas também de
agregar elementos de diferentes naturezas, como são as esculturas africanas e as surrealistas, produzindo híbridos.16 Nietzche(2001)
nos ajuda a rememorar que “bom e mau”, “bom e ruim” são criações humanas. Ele mostra alguns estilhaços de duas tramas de saber
e poder que foram constituindo algumas das imagens que passaram a representar os valores morais presentes na nossa sociedade.
Essas tramas partem da valorização da forma de existência da nobreza e da forma da existência sacerdotal
          Erasmo, envolvido com o processo de produção da sociedade cavalheiresca,
apresentou alguns encadeamentos que se constituíram em um dos principais papéis que
a escola viria a cumprir na sociedade industrial. Elias(1994c:68-9) nos conta que, na
introdução do livro de Erasmo, esta presente a afirmação de que “a arte de educar
jovens envolve várias disciplinas, mas que a civilitas morum é apenas uma delas” e não
nega que esta é a “crassissima philosophiae pars” (a parte mais grosseira da filosofia)”.


          Com outros fragmentos, desenvolvem-se, em várias cidades da Europa, as
escolas de artes liberais e as artes produtivas. Estas eram voltadas para a produção e
tinham como alunos os filhos de mercadores locais, de artesãos e de alguns poucos
pobres e miseráveis, que contavam com uma certa cooperação dos mestres de ofício. Os
estudos estavam efetivamente voltados para a produção material e o cálculo era muito
valorizado. Nas escolas de artes liberais a gramática era o instrumento principal.
Segundo Manacorda(1996), havia um professor chamado Vergério que afirmava ser
esta o instrumento para qualquer estudo liberal e a considerava como a primordialis
scientia paedagoga.

          Assim, vemos aparecer, já nos séculos XVI e XVII, algumas das imagens que
farão parte das acaloradas discussões do século XVIII e que, ainda hoje, se fazem
presentes em nosso cotidiano escolar.


          O humanismo se produziu uma marcação identificável na divisão social,
concorrendo para que novas marcas fossem sendo estabelecidas, entre elas, a de
civilização. Na França do século XVI foi gerada uma distinção entre aquelas pessoas
que a tinham e as outras. Segundo nos conta Elias (1994c), o sucesso, a rápida
disseminação e o emprego do livro de regras de civilidade, como manual educativo para
meninos, mostram que este atendia a uma necessidade social, pois registrava os
modelos de comportamento para os quais estavam maduros os tempos e que a sociedade
– ou mais exatamente a classe alta, em primeiro lugar – exigia (p.83). Erasmo dará
nitidez a força a uma palavra muito antiga e comum, “civilitas”. Este conceito foi
impresso nas corporeidades da época com o sentido que recebeu e palavras
correspondentes surgiram em várias línguas em um mesmo período: civilité (na França),
civility ( na Inglaterra), civilitá ( na Itália) e Zivilitat ( na Alemanha)17.

        Segundo Manocorda(1996), da confluência da proposta de escola humanista
com a escola de artes produtivas nasceu uma terceira forma de pensar a formação do
homem. Homem este que, segundo Certeau (1994), se reconhece como fazedor de sua
história, colocando-se como um potencial transformador do mundo, a partir de suas
ações. Assumindo o homem como o novo centro do mundo, o humanismo produziu
uma radical transformação na cultura da elite e gerou um eu que se diferenciou do grupo
e se radicalizou. Duby(1990) nos aponta para o fato de que o embrião deste indivíduo já
estava presente desde o século XII com o florescimento da autobiografia. Conta-nos
que,
                       por certo, Abelardo, um Guibert de Nogent imitam modelos da
                Antiguidade; mas essas obras literárias afirmam com brilho a
                autonomia da pessoa senhora de suas próprias lembranças, como o é de
                seu próprio pecúlio(p.507-8).

        Vai    desaparecendo      a   palavra    cosmológica,      desaparecem   os   lugares
preestabelecidos e a identidade do novo homem que surge liga-se ao seu potencial de
produção, perpassado por uma iniciativa interminável, em face da necessidade de
construção da nova ordem que se instala.


        O corpo que se comunicava com o exterior se fecha e passa a ser compreendido
pelo funcionamento especifico, um funcionamento singular que [...] contará com o
desenvolvimento das regras de civilidade[...] e fará do corpo algo semelhante a uma
máquina, contribuindo para a produção da subjetividade do homem moderno
(Sant’Anna, 1996:245). Tal corpo vai se tornar padrão lá pelos séculos XVII e XVIII,
quando se estruturou a idéia de indivíduo, e é ainda hoje o top de linha da Modernidade.
Certeau(1994) nos conta que
                       foi necessária uma longa história, do século XV ao XVIII, para
                que esse corpo individual fosse “isolado”, da mesma maneira como se
“isola” um corpo em química ou em microfísica: para que então
              se tornasse a unidade básica de uma sociedade, após um tempo de
              transição onde apareceria como miniaturização da ordem política ou
              celeste – um “microcosmo”. Ocorre uma mudança dos postulados
              socioculturais, quando a unidade de referência progressivamente deixa
              de ser o corpo social para tornar-se o corpo individual, e quando o
              reino de uma política jurídica começa a ser sucedido pelo reino de uma
              política médica, da representação, da gestão e do bem-estar dos
              indivíduos. (p.233-4)
       Para a elite político-cultural européia, que se organiza e se pensa como padrão –
o normal, o bem e a verdade -, os demais seres humanos passam a ser comparados a sua
perfeição. Não apenas as formas político-administrativas e espirituais são tomadas com
critérios de comparação, também as práticas corporais entram como elementos para a
produção das classificações. Os outros passam a ser ordenados de acordo com o grau de
diferença e de semelhanças que possuem com o modelo de cultura da elite européia.
Inclui-se na ordenação a idéia de falta de. Na mulher, falta o pênis, nos habitantes do
campo, falta a urbanidade, nos não-cristãos falta a fé, nos habitantes da colônia, há falta
de habilidade de viver a vida da Corte, nas crianças, há falta de educação, de postura, de
autocontrole.


       A natureza vai sendo desmistificada nos diferentes campos do conhecimento e o
desencantamento chega ao corpo por caminhos diversos, tramando uma outra
sensibilidade humana. São marcantes as descobertas como as do padre polonês Nicolau
Copérnico (1473-1543) e também as de Giordano Bruno. O primeiro publicou
anonimamente em 1514, sua idéia sobre o sol ser o centro estático em torno do qual a
Terra e os planetas se deslocavam em órbitas circulares. O segundo escreveu e falou
sobre a infinitude do Universo e afirmou ser Deus apenas o princípio inteligente que lhe
deu origem.


       A relação existente entre o saber e o divino foi sendo rompida, bem como foram
desfeitas as correspondências entre o corpo e o mundo, nas quais os equilíbrios e
desequilíbrios na ordem do cosmo produziram alterações no e do corpo. A abertura do
corpo humano, por exemplo, que na cultura medieval era inconcebível por tratar-se do
lugar do espírito, torna-se comum e a anatomia humana ganha o centro das atenções,
especialmente nos espaços da cultura de elite, nos séculos XV e XVI.
_______________
17 Segundo Elias(1994c) a relação próxima que ocorreu na França entre intelectualidade, aristocracia e burguesia não se deu na
Alemanha, e esta palavra nunca alcançou a mesma extensão que as palavras correspondentes alcançaram nas outras grandes
culturas. Sendo assim, o conceito francês de civilisation reflete o fato social especifico da burguesia da nação exatamente como o
conceito de Kultur reflete o alemão(p.63). 23 Galileu Gallilei. 24Nascimento de Vênus Sandro Botticelli 25 Dr. Tulp em dessecação
de corpos




          As primeiras dissecações oficiais ocorreram em universidades italianas no século
XIV e precisaram de uma autorização do Papa, pois, do contrário, seriam interpretadas
como heresias e severamente punidas. Eram precedidas de rituais, com a função de
aplacar e redirecionar as forças perigosíssimas que o olhar invasor libertava; talvez
representasse um meio simbólico de prevenir os homens contra a ameaçadora
destrutividade            que        o       olhar        objetificante           silenciosamente               prenunciava
( Rodrigues,1999:59).



       Essas idéias aliadas a outras tantas descobertas, como a do telescópio, foram
deslocando o foco teísta de produção do conhecimento. Esses deslocamentos fizeram,
por exemplo,Galileu Galillei23 (1564-1642) sentir o sopro da morte quando, em 1609,
afirmou que o sol era o centro do universo. Os decalques de Galileu se fizeram a partir
de suas observações astronômicas que confirmaram a validade da teoria heliocêntrica e
rompeu com a visão geocêntrica.




                                                                                 23




          Considerando pai da física moderna, foi o primeiro a combinar experimentação
científica com o uso da linguagem matemática para formular as leis da natureza
descobertas por ele, sendo considerado, por alguns cientistas, o pai da ciência moderna.
Acreditava que a filosofia estava escrita no mundo, esse grande livro que permanece
sempre aberto diante de nossos olhos, mas que, para desvenda-lo, era preciso primeiro
entender a linguagem e os caracteres com que foi escrito. Para ele o mundo havia sido
escrito em Matemática e os caracteres eram os triângulos os círculos e outras figuras
geométricas. O uso da descrição matemática da natureza tornou-se dominante na ciência
do século XVII. Capra (1999), citando Laing, nos conta que essa racionalidade nos
levou a perder a visão, o som, o gosto, e o olfato, e com eles foi-se também a
sensibilidade ética e estética. Segundo o mesmo autor, nada mudou tanto o mundo
como a obsessão dos cientistas pela medição e pela quantificação do mundo.


       O conceito de tempo se transformou, havendo um entrelaçamento com o de
espaço e o de movimento dos planetas. Em 1687, já no final do século XVII, Sir Isaac
Newton publicou o seu livro Princípios da filosofia natural no qual foi desenvolvida a
teoria de como os corpos se movem no espaço e no tempo, bem como uma complexa
matemática para analisar tais movimentos. Ele definiu o tempo como uma grandeza
absoluta, cuja passagem é sempre constante, independente do observador (e que
aprendemos, ainda hoje no ensino médio). Também elaborou a complexa lei da
gravitação universal, de acordo com a qual cada corpo no universo é atraído por todo e
qualquer outro corpo, por uma força tanto mais intensa quanto forem os corpos e mais
próximos estejam uns dos outros (Hawking,p.22)


       Nas artes plásticas o homem, que olhava para as imagens sagradas ou para o céu,
voltou seu olhar para o si próprio e viu os desejos humanos. O mundo não era mais
pensado
24


como um lugar de sofrimento e sim um lugar de delícias, onde o ser humano, a mais
perfeita das criações divinas, foi colocado para ser feliz, para usufruir dos benefícios e
das belezas de tudo o que a rodeia, inclusive o próprio corpo. As entranhas corporais
podiam ser agora vistas e ali estavam elas expostas em “ A aula de anatomia do Doutor
Tulp”, pintado por Rembramdt em 163225.




                                                                 25 Dr. Tulp




       A pedagogia entendida também como regras de civilidade, a Medicina e a Arte
se apropriaram do corpo como novo objeto a ser olhado, estudado e mesmo adorado,
queriam, acima de tudo, conhecer, estudar, aprender, e os textos da cultura clássica
foram vistos como portadores de reflexões e conhecimentos a serem redescobertos.
Sendo o homem a medida de todas as coisas, a valorização do ser humano.Leonardo da
Vinci (1452 – 1519), que defendia uma educação voltada para a prática objetiva, fez
inúmeros estudos anatômicos a partir da dissecação de cadáveres e Miguel Ângelo
(1475 – 1564) estudou os cadáveres para identificar as articulações, os ossos, os
ligamentos, etc18.




___________________
 18 A academia das Artes de Desenho, em Florença, foi a primeira a instituir o ensino obrigatório da anatomia, se antecipando até
mesmo ás escolas de medicina. Contudo, as dissecações multiplicam-se na Europa e muitas podem ser assistidas pelo público, pois a
curiosidade para ver os segredos da carne humana era enorme. 26 Na foto, a escultura David, de Michel Ângelo, concluída em 1504.




                                                                                   26 David, 1504




          A valorização do ser humano resultou na criação de muitas telas e esculturas que
valorizavam as formas humanas ou que retratavam corpos nus. A escultura David, de
Michelangelo, concluída em 1504.


          As pessoas anatomizadas não pertenciam ao mundo da cultura de elite; eram
condenados, indigentes e pobres em geral. Pagavam com a exposição de suas vísceras
os “gastos” que a sociedade teve com eles. As dissecações contribuíram para modificar
o imaginário do homem ocidental e desmistificaram o cadáver, laicizando-o e
colocando-o a serviço da ciência. O corpo humano depois de morto, aberto e
desmembrado pelas mãos daqueles que o dissecam em nome da ciência, tende a se
transformar num livro rico de explicações que, segundo Vesálio, não mente jamais
(Sant’Anna, 1996:248).


       O humanismo italiano tornou-se europeu e há, de uma forma, uma autocrítica
quanto ao aspecto de seu pedantismo. Erasmo de Roterdã era também um humanista
cristão, que lia os clássicos. Torna-se um crítico do pedantismo gramatical e do sadismo
pedagógico que permaneciam nas escolas. Criticava o ambiente sujo e barulhento, bem
como a inconsistente verbosidade do ensino. Para o autor que sistematizou as regras de
civilidade do século XVI, a educação do cidadão, do gentil-homem e do governante
tinha uma função civil. Como nos conta Monacorda (1996):
                       Eles ampliam o próprio quadro de atenção das palavras às
               coisas, do mundo antigo à atualidade, ou, como diz Machiavelli, da
               “contínua lição dos antigos” à observação da realidade efetiva”, e
               interferem autorizadamente junto ao poder político para sugerir uma
               nova e diferente organização da cultura e da instrução (p.185).

       Tornando-se forte e bem recebida, em diferentes espaços europeus, a concepção
humanista de educação entra na intrincada rede de discussão sobre o que deveria ou não
deveria ser a educação na nova sociedade que se anunciava. A igreja Católica, por
exemplo, chegou a considerar o estudo do grego uma heresia e se chocou com posições
como a de Leonardo da Vinci, que propunha uma formação dos homens e uma cultura
voltadas para as artes produtivas, para a prática. Assim, alguns criticavam o “tempo”
gasto com os estudos liberais, pois os consideravam dispensáveis para a dinâmica de
comércio e de produção. Outros não consideravam as artes produtivas como estudo, por
não identificarem nestas os conhecimentos que aperfeiçoariam o espírito; havia, ainda,
aqueles que criticavam as disciplinas teóricas, porque estas se ocupavam apenas com os
conhecimentos do espírito e da mente, nada produzindo de concreto. Manacorda(1996)
nos apresenta, no diálogo imaginário do tanoeiro Gelli com sua alma, a expressão do
que acontecia na época e que, ainda hoje podemos identificar nos cursos superiores
procurados por pessoas já inseridas no mundo do trabalho; em geral, ocorre com as
licenciaturas. A alma aconselha o tanoeiro a dedicar-e aos estudos das ciências sem
“perturbar seus afazeres”, isto é, continuando a ser tanoeiro, mas culto.
Ele argumenta:
                      Não é mais fácil fabricar dornas do que estudar as letras, e Gelli
               deplora fortemente “o medo que fazem os doutos, tal que afasta do
estudo”, “ a inveja maldita dos doutos” que “fazem de tudo para
              dissuadir os homens dos estudos” (p.189).

       Fazendo uma crítica ao uso do latim como língua culta e á imagem do trabalho
como penitência, Gelli buscou a produção de si como trabalhador culto, uma cultura
voltada para a prática. Ele identificava na cultura dos doutos uma arte de dominar e
dissuadir o povo do estudo, como um “bem” que deve permanecer entre os iguais.


       Vão se inscrevendo novas formas de se mover no espaço/tempo que se organiza.
A elite, além de se impor os códigos de civilidade e a eles se submeter, inicia a
produção de um maquinário cultural que se estende para além de suas fronteiras de
classe ou de pertença cultural. Como ação ou como reação, aquilo que faz parte desta
elite vai assumindo a força de verdade. A noção de medida interna dos gregos, por
exemplo, que não podia ser expressa em termos quantitativos, mas em sua relação com
a beleza, saúde e harmonia do próprio objeto ou pessoa será, reapropriada por uma
quantificação exata de tudo o que seja possível.


       É importante destacar que nos séculos XV a XVII, as fissuras nas imagens-
memórias da Idade Média não significaram ruptura ad-aeternum, e nem para todos. Para
algumas pessoas as mudanças que estavam ocorrendo não faziam sentido ou sequer
eram percebidas, para outras eram heresias, e outros as ressignificavam, tensionando
ainda mais o processo e produzindo novas rupturas.
       No final do século XV, portugueses e espanhóis lançaram-se em mares nunca
antes navegados. Desterritorializados, traçaram linhas de fuga em busca de novas
tramas que pudessem manter a dinâmica comercial interna da Europa. Assim, são
buscadas novas rotas para o comércio, produtos comercializáveis, ouro e prata – para a
cunhagem de moedas. O mundo conhecido, pelos europeus, que era a Ásia, África e
Europa, se expandiu.


       Em Portugal, D. Henrique, filho de D. João I, organizou na Vila de Sagres um
centro de pesquisa de navegação. Na Espanha, após a expulsão dos mouros, em 1492,
os reis Fernando e Isabel patrocinaram a viagem idealizada por Colombo, que,
contestando o paradigma científico/religioso da época, afirmava ser a Terra redonda e,
portanto, passível de ser circunavegada.
A igreja, sem a força unificadora de outrora, mantinha-se a partir de sua forte
aliança com a nobreza. Contudo, a dinâmica de vida nas cidades, a produção de novos
conhecimentos e a autonomia que alguns setores da sociedade vão adquirindo colocam
em cheque não apenas o controle que essa ainda mantinha sobre a produção e a
aceitação dos conhecimentos como, e especialmente, seu poder para isso.


       O barateamento para a produção de bíblias e outros livros possibilitou, aos que
sabiam ler em latim, o acesso às “verdades divinas” sem a necessária interpretação dos
padres. Essa vontade de saber, que é também uma vontade de poder, aliada ao espírito
de individualização, aos descontentamentos com o comportamento do clero romano e ás
questões políticas e econômicas específicas dos diferentes espaços da geografia
européia, produziu quebras na unidade interna da Igreja Cristã. O conjunto dessas
fissuras foi denominado “Reforma” e os homens que dele participaram foram
designados como protestantes. Apesar de não haver uma linha única de atuação, os
movimentos de protesto surgiram mais ou menos entrelaçados, questionando a
obrigatória interpretação da Bíblia por um clérigo sábio, a realização de missas em
latim para uma população que, em geral, só falava a língua local, a concentração de
riquezas e de terras da Igreja, a condenação que esta fazia ao lucro excessivo e até a
indissolubilidade do casamento. Esses protestantes apareceram na Inglaterra, Suíça,
Alemanha e França. São em sua maioria religiosos de origem cristã18.

       Entre os protestantes, está Lutero27 que, na Alemanha, propõe a organização de
um sistema escolar destinado ao trabalho. Para ele a instrução deveria ser dada a
meninos e meninas, pois seu objetivo era formar homens e mulheres atuantes
sociais.Manacorda (1996) nos conta que ele, buscando inspiração na escola da
Antiguidade,criou um projeto de educação para as classes destinadas à produção e
propôs para isso um processo ativo, no qual se articulariam instrução e trabalho. A
Reforma na Alemanha exprimiu, sobretudo, exigência populares, embora não
estivessem ausentes atitudes aristocráticas. Assim, embora não tenha       havido uma
ruptura na concepção dicotômica entre trabalho intelectual e manual, fortemente
presente na educação dos países Ibéricos, da França e da Itália, as classes destinadas à
produção são consideradas não mais como os principais destinatários da catequese
cristã, mas também como participantes ativos no processo comum da instrução (p.198).
Criticando a escola tradicional e a atitude humanista, Lutero colocou o acento de
seu projeto de escola na utilidade social da instrução, destinada a formar homens
capazes de dirigir o Estado e mulheres capazes de dirigir a casa (Manacorda,
1996:197). Ele não falava apenas para a classe: dirigente, falava também para os
pais,estimulando-os a mandarem seus filhos à escola. Tentou conciliar o respeito pelo
trabalho manual produtivo com o tradicional prestígio do trabalho intelectual.
Manacorda (1996), citando Lutero, nos possibilita identificar, até mesmo, uma
ressignificação do corpo feita pelo protestante:


                      Os trabalhadores manuais são inclinados a desprezar os
               trabalhadores da mente, como os escrivães municipais ou os mestres de
               escola. O soldado gaba-se das dificuldades de cavalgar com a
               armadura, suportando o calor, o gelo, a poeira, a sede; mas eu gostaria
               de ver um cavaleiro capaz de ficar sentado o dia inteiro com o nariz
               fincado num livro... O escrever não empenha somente a mão ou o pé,
               deixando livre o resto do corpo para contar u brincar, mas empenha o
               homem inteiro. Quanto ao ensinar, é um trabalho tão cansativo que
               ninguém deveria ser obrigado a exerce-lo por mais de dez anos. (p.198)

       Ele identifica no trabalho do a produção de riquezas. Identifica que, nas técnicas
corporais, nas formas de fazer, há uma produção importante para a Alemanha e, de certa
maneira, que o corpo é o “instrumento” para o fazer humano.Assim, articulando os
conhecimentos dos mestres artífices e os da educação clássica, procura a produção de
uma outra imagem de educação. O alemão Melanchton, em 1526, afirma que uma
cidade bem ordenada precisa de escolas, onde as crianças, que são o viveiro da
cidade, sejam instruídas (Manacorda, 1996:198)




                                                      27 Lutero
“Lutero, ao criticar o modelo tradicional de ensino da Igreja, idealizou uma
escola que em três anos realizasse um programa educativo equivalente ao que se
levava uma vida inteira para completar e defendeu a utilidade social da educação a fim
de formar homens capazes de governar.

                    Aos conselheiros de todas as cidades da nação alemã, para que
             instituam e mantenham escolas cristãs:
             ... Caros Senhores, cada ano gasta-se tanto em espingardas, estradas,
             caminhos, diques, e tantas outras coisas desse tipo , para dar a uma
             cidade paz e conforto; mas por que não se investe muito mais, ou pelo
             menos para a juventude pobre e necessitada, de modo que possam surgir
             entre eles um ou dois homens capazes, que se tornem mestres de escola?
                    Não é talvez, evidente que hoje um rapaz pode ser instruído em
             três anos, de tal modo que aos quinze ou dezoito anos ele saiba muito
             mais do que quanto se saiba quando existiam tantas escolas superiores e
             tantos conventos? E assim é: o que se aprendia até agora nas escolas
             superiores e nos conventos a não ser tornar-se uns burros, patetas e
             cabeçudos? Estudava-se vinte, quarenta anos e não se aprendia nem o
             latim e nem o alemão...
                                                                                                       MARTINHO LUTERO



          Para Lutero, a educação deveria se libertar da Igreja e ser exclusiva do Estado,
assim ela poderia atingir a todas as pessoas, ricos e pobres, homens e mulheres, e o
Estado poderia obrigar a todos a freqüentar a escola. Apesar de propagar uma
“educação para todos”, a educação luterana não deixava de ser elitista, pois pregava
um tipo de educação para os trabalhadores mais simples e uma outra destinada à
classe privilegiada com condições de ascensão ao ensino superior. Os movimentos
protestantes promoveram a difusão da instrução a fim de que cada um pudesse ler e
interpretar pessoalmente a Bíblia, sem a influência do clero”. ( CND. Iesde.2002:263)


______________
18 Esses protestantes são: Na Inglaterra , Henrique VII, que, em 1534, é reconhecido pelo parlamento inglês como chefe religioso
supremo da Igreja Anglicana. Contudo, somente no governo de Elisabeth I (1558-1603) é que se consolida a Igreja Anglicana; o
francês João Calvino(1509-1564) que encontra, no movimento iniciado por Ulrich Zwinglio(1484-1531), na Suíça, o caminho para
que sua concepção protestante seja apoiada pela burguesia mercantil local; o monge agostiniano Martinho Lutero (1485-1596) e
Filipi Melonchtom (morreu em 1560) que, na Alemanha, propõem uma educação baseada em princípios bem diferentes dos
hegemônicos no restante da Europa.



          Aparece neste século, e na Alemanha, mais explicitamente a idéia de formar
para ser governante independentemente de uma linha sucessória. Há mais uma fissura
na imagem de educação       propagada pela Igreja e hegemônica na Europa. O Estado é
instigado a assumir a formação da população; as ações do protestantes, no sentido de
formar governantes e trabalhadores distantes das ordens religiosos católicas, provocam
mais uma reação da Igreja que, como nos conta Manacorda (1996), reagrupa suas forças
para manter o monopólio do clero nas questões da educação, de sua influência nas
questões dos Estados, enfim, da força política de suas imagens-memórias e de suas
prerrogativas de saber e poder. Nesta busca por manter-se no controle dos saberes, ela
acaba desenvolvendo argumentos no sentido de condenar as iniciativas alheias à
extensão da instrução às classes populares como toda inovação cultural(p.200).


       O concílio de Trento (1545 –1564) marca a reação da Igreja às várias
transformações que ocorriam na sociedade e, especialmente, no campo da educação e da
cultura. Há uma crítica à invenção da imprensa e nasce uma idéia de que já existiam
livros demais. Várias espécies de livros foram condenadas, entre elas, as de autores
como Lutero, Calvino, Zwínglio e outros considerados hereges. Houve também
proibições de assuntos como geomancia, piromancia, onomancia, quiromancia ou
aqueles relativos a adivinhações, sortilégios e magias.


       O concílio também tomou iniciativas de reforma educacional e, evocando
antigas tradições, não só propôs a reorganização dos conteúdos escolares, mas
hierarquizou-os, implantou e produziu forte hierarquia das relações internas nas escolas.
A ignorância da maior parte do clero e a precariedade da formação de alguns de seus
professores levaram a dois movimentos: ao maior rigor na seleção dos jovens para
ingressarem nas suas fileiras, que passaram a ter de, além de serem filhos de
matrimônio legítimo, saber ler e escrever em latim; e a organização de um fluxo de
estudos para aqueles que desejavam se tornar professores.
                                    Á parte os seminários para a formação do clero, o
               exemplo mais bem-sucedido de novas escolas para leigos, recomendado
               pelo Concílio de Trento foi o das escolas dos jesuítas, campeões
               máximas na luta da Igreja Católica contra o protestantismo (Manacorda,
               1996:202)

       Dedicados à formação dos dirigentes da sociedade européia, no final do séc.
XVI, os jesuítas publicaram a Ratio Studiorum, que regulamentou rigorosamente o
sistema escolástico jesuítico e organizou o ensino em classes, horários, programas e
disciplinas. Os jesuítas captaram, desta época, uma forte tendência que Descartes
expressaria posteriormente.


          Os séculos XVI e XVII foram palco de rupturas nos diferentes campos do
conhecimento e da vida, sendo dispensável aos estudiosos da complexidade destacar se
foi esse ou aquele aspecto, essa ou aquela ação que produziram uma ruptura, pois não
houve um ponto onde possamos dizer foi aqui que começou. O que podemos apontar
são alguns nós, nos quais o olhar arguto de algumas pessoas captou o movimento, e as
sínteses das vivências de mundo foram produzidas e compartilhadas. Uma destas
pessoas com capacidade de síntese de sua época, foi René Descartes19(1596 –1650).


          Considerado por muitos autores como o fundador da Filosofia moderna, buscou
a elaboração de um método que permitisse a unificação de todo o saber. A certeza que
Descartes procurava.
                                   devia ser absoluta e contar com um fundamento
                     indubitável. Deste modo, a filosofia cartesiana instaurou um modo
                     especifico de relação do ser humano como sujeito e o mundo como
                     objeto que já havia começado a desenvolver-se no Renascimento.
                     (Najamanovich, 2001:67)

                                    Em suma, o ser Humano é aquilo que pensa, acredita,
                     mentaliza, atraindo para si coisas boas ou ruins, conforme o que tenha
                     pensado, acreditado, mentalizado. Não queremos dizer que haja
                     predestinação para uma determinada experiência ou situação. O destino
                     quem faz é o ser humano, de acordo com o modo e a forma de seus
                     pensamentos. Tudo está relacionado, quando se tem a pretensão de
                     entender paracientificamente todo o processo.


_____________
19 René Descartes nasceu em la Haye(Touraine). Sua juventude nada tem de particular. Fez estudos no colégio dos Jesuítas de La
Fléche, uma das melhores e mais célebre escolas de sua época. Em 1616 licenciou-se em Direito em Poitiers. Oficial na Holanda,
sob o comando de Maurício de Nassau, encontra tempo para escrever um Traité de Musique (1618), onde explica a Música por um
cálculo de proporções. A noite de 10 de novembro de 1619 é decisiva na vida de Descartes. Ele estava em seu quarto aquecido
naquela entrada rigorosa do inverno da Baviera, entretido em suas meditações, quando descobriu, entusiasmo, um método universal
para a pesquisa da verdade. Fez então um voto de peregrinação em Notre-Dame-de-Lorette. Prosseguiu em suas viagens através da
Alemanha e Holanda, voltou para à França, tornou a partir para a Suíça e Itália. Retornando `a França,fixou-se em Paris
(1625-1629), entregando-se a vida mundana.
                      Existem duas formas de você conseguir esse entendimento. A primeira,
                     a nível filosófico; a outra, a nível cientifico. Entre as duas, preferimos a
                     segunda, porque ao compreender como funciona na realidade, fica mais
                     fácil para você assimilar, favorecendo um controle bem maior no
                     exercício de mentalização positiva, de forma técnica, e não de modo
                     apenas intuitivo ou filosófico. O ideal é conciliar os dois níveis, facilitar
                     a evolução.( Fausto Oliveira, Meu anjo,1996)
Instalando um modo especifico cartesiana se introduz na vida com sua noção de
sujeito racional, capaz de conhecer e de elaborar imagens ou representações do outro,
que é diferente de si.


       Para alguns autores ele é, também, o pai da dicotomia entre corpo e mente, mas
Najmanovich (2001), assim como Morais (1992) e Fontanella (1995), reconhece que
antes da Modernidade já havia uma concepção dualista de homem que distinguia o
corpo da mente. Peter Brown (1990) nos relata que na sociedade ocidental esta
dicotomia aparecerá, marcadamente, a partir do primeiro século depois de Cristo,
através do pensamento do apóstolo Paulo. O autor afirma que: a guerra do espírito
contra a carne e da carne contra o espírito foi uma imagem desesperada da resistência
humana à vontade de Deus (p.50).


       Esta dicotomia, entanto, não tinha a marca de uma imagem maquinizada do
corpo, nem este era esvaziado de sentido para a existência como o será na produção de
Descartes. Foi rompida a ligação do corpo com o mundo: a corporeidade foi dilacerada.


       A nova imagem de homem que estava nascendo foi sintetizada por Descartes:
Um de seus enunciados afirma: Se duvido, penso. A sua afirmativa mais famosa (
Penso, logo existo) nos leva a O pensamento cartesiano entendia que quando a verdade
não era evidente era preciso desenvolver métodos de traze-la à tona. Os métodos
propostos foram os seguintes: análise, síntese, enumeração. Penso, logo existo.
Entretanto, ao se dar conta de ter parido um homem pensante, percebe que lhe fica
muito difícil atribuir entidade ao mundo que percebe. Assim, ele pode a colaboração de
Deus que não criaria uma criatura inteligente para engana-la sempre (Najmanovich,
2001,19-20). O agir e o sentir foram subjugados à razão, como podemos identificar na
passagem exemplificativa abaixo.
                                     Deus, examinando com atenção o que eu era, e
               vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia
               qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por
               isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de
               eu pensar, em duvidar da verdade das outras coisas seguia-se, mui
               evidente e mui certamente, que eu existia; ao passo que, se apenas
               houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez
               imaginara fosse verdadeiro, já não teria qualquer razão de crer que eu
tivesse existido; compreendi por ai que era uma substância cuja essência
              ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser não necessita de
              nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que
              eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do
              corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que
              este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é. (Descartes,
              1996:92)

                     Em suma, o ser Humano é aquilo que pensa, acredita, mentaliza,
              atraindo para si coisas boas ou ruins, conforme o que tenha pensado,
              acreditado, mentalizado. Não queremos dizer que haja predestinação
              para uma determinada experiência ou situação. O destino quem faz é o
              ser humano, de acordo com o modo e a forma de seus pensamentos.
              Tudo está relacionado, quando se tem a pretensão de entender
              paracientificamente todo o processo. Existem duas formas de você
              conseguir esse entendimento. A primeira, a nível filosófico; a outra, a
              nível cientifico. Entre as duas, preferimos a segunda, porque ao
              compreender como funciona na realidade, fica mais fácil para você
              assimilar, favorecendo um controle bem maior no exercício de
              mentalização positiva, de forma técnica, e não de modo apenas intuitivo
              ou filosófico. O ideal é conciliar os dois níveis, facilitar a evolução.
              ( Fausto Oliveira, Meu anjo,1996)

       A vivência corporal foi compreendida por ele como uma representação na
mente e os objetos do mundo exterior como meros dados da consciência. Para ele
existiam aqueles que racionavam, “pensavam” e sabiam da sua existência e os que
existiam por si, e confirmada por Fausto de Oliveira, um parapsicólogo e autor do livro
“Meu Anjo” tudo sobre regressão de memória em busca de sua alma gêmea. Ele via os
seres humanos como sendo habitados por uma alma racional que estava ligada ao
corpo através da glândula pineal, no centro do cérebro(Capra, 1999:56).
Ressignificando e levando às últimas conseqüências       a distinção entre resextensa
(extensão, corpo, matéria) e res cogitans ( pensamento, consciência racional), ele
prendeu o Eu no cogito (razão), contribuindo para a geração de uma lógica filosófica em
que a imagem-memória do Eu se fixou como a da razão.


       Profundamente influenciado pelo pensamento barroco do século XVII, que via
as máquinas e as engenhocas como que dotadas de vida própria, encantando as pessoas
com a magia de seus movimentos Descartes explicou em detalhes as semelhanças dos
movimentos e das várias funções biológicas do corpo com os mecanismos. Na sua
busca por construir uma ciência natural completa, englobou os organismos em sua
concepção mecanicista de matéria e as imagens dos seres vivos foram assimiladas às de
máquinas. Sant’Anna (1996) nos conta que o velho sonho de criar vida foi atualizado
com a fabricação dos autômatos, em particular aqueles de Vaucanson no Século das
Luzes, inventor, entre outros, de um andróide tocador de flauta e de um pato que come,
bebe e faz a digestão tal qual um pato vivo. (p.250). Descartes era fascinado por esses
mecanismos, chegando a produzir alguns e a afirmar que não via diferença entre eles e
os produzidos pela natureza.


       Najmanovich(2001) nos aponta Descartes como o produtor de uma trilogia
fundamental que caracteriza a “maquinização” da imagem de mundo, de corpo e de
conhecimento: a fundamentação metódico-maquínica, a distinção radial corpo-mente e
a geometria analítica (p.19). Esta última contribuiu para que o olhar para o espaço se
transforme em um olhar esquadrinhador, procurando fixar o lugar das coisas e das
pessoas.


       Inferiorizado em relação ao pensamento, o corpo precisava ser domado, não pela
fé em Deus, mas pela razão. Visto como máquina, no momento em que começa a se
organizar uma economia capitalista, o corpo é assumido como mais um instrumento na
produção; porém um instrumento que deve ser controlado, moldado, adaptado aos
novos tempos. Uma forma científica se apossa do corpo e combina ordenação, precisão
terminológica, hierarquia e razão matemática. É o corpo máquina que fará parte da
produção e se distinguirá do Eu. O homem do mundo burguês passa a ter um corpo.


       A prática do registro escrito assumiu um papel quase místico perante a
regulamentação necessária ás novas relações e a importância de compreender o mundo
de forma racional. Passou a ser necessário anotar o que se via, o que se pensava, o que
se queria fazer... A memória ganhou relevância e o mundo não podia mais ser narrado
pela boca do povo, mas por aqueles que “sabiam” como o “mundo realmente era”. A
idéia de progresso foi se impondo, sob formas científicas, eruditas, tecnológicas e
políticas, invadiu o mundo vivido e se apossou dos corpos, dos sentidos e dos agires. O
conhecimento passou a ter um valor aplicativo e a identidade do homem moderno foi
sendo tecida pelo seu potencial de produção e capacidade de registro do que estava
sendo feito, demandando uma iniciativa interminável, diante das necessidades e das
propostas da nova ordem que se instalava.
Foram alterados, no Ocidente, hábitos cotidianos, as relações de poder e as
relações de produção material e do conhecimento. O acordar e o dormir não mais se
regulariam pela dinâmica das estações do ano ou pela dinâmica de cada grupamento
social. Agora o relógio e a demanda da produção começam a dar um novo ritmo ao
mundo vivido. A refeição, por exemplo, não seria mais saboreada no momento em que
ficava pronta, em festividades, freqüentadas por todo o tipo de gente, ou quando o corpo
dela necessitava; tornou-se necessário consumi-la em horários previstos. As
necessidades e os desejos humanos precisavam ser controlados para atender as
exigências das novas maneiras de produção e da nova forma de vida das cidades. As
pequenas oficinas vão sendo substituídas pelo trabalho nas fábricas e as ferramentas
simples dos artesões, pelas novas máquinas. Uma nova classe se incorpora à cultura de
elite.São os donos das fábricas e dos bancos. Tinham dinheiro e os meios de produção.
Alguns desejavam ter também os maneirismos e os saberes da aristocracia. Na França, a
aristocracia perde poder econômico, mas se alia aos burgueses; há um escambo cultural-
econômico.


       A crença de que o ser humano seria capaz de conhecer tudo o que existia no
mundo e que era perceptível aos sentidos e encampado pela experimentação levou à
criação da Enciclopéida26 – ou Dicionário Racional das Ciências, das Artes e Ofício -,
que deveria conter todo conhecimento humano. A Enciclopédia francesa foi a ampliação
de uma enciclopédia inglesa, publicada em 1728, e sua elaboração foi coordenada pelo
escritor Denis Diderot (1713 –1784), que contou com várias dezenas de colaboradores.
O principal colaborador de Diderot foi o matemático Jean Le Rond D’Alembert (1717
–1783), mas outros expoentes do Iluminismo, como Voltaire, Monteisquieu e Rousseau,
também contribuíram para a produção dos textos que formam a Enciclopédia. A obra
completa contém 35 volumes, nos quais é feita uma revisão crítica das artes e das
ciências sob o prima do Humanismo e do Racionalismo. O objetivo dos enciclopedistas
era divulgar suas teses filosóficas e as descobertas científicas.
28 Enciclopedia das artes e ofícios.


       Para a maioria da população pobre, e também para os camponeses, o corpo
manterá sua conexão com a natureza, subordinado aos costumes comunitários. As
crianças, que aprendiam sobre o mundo, a partir das experiências cotidianas, na
convivência com os adultos, no espaço comunitário, serão mandadas à escola, para
aprender as novas maneiras de ser, próprias da civilização moderna.


       Com já dissemos, no plural, porque o digo a partir da fala de vários outros
autores, o corpo medieval não tinha nada a ver com aquele urdido pela modernidade,
não era um corpo contido, a boca era escancarada, o apetite, voraz, os excrementos eram
considerados elo essencial da cadeia da vida e da morte, uma ramificação do corpo,
ultrapassando os próprios limites e sendo fundido com o mundo. Não havia fora dos
mosteiros uma moralidade especifica de controle da corporeidade. As partes do corpo
tinham nomes que lhes eram dados sem rodeios ou refinamentos.
       A construção do Renascimento transformou a consciência cosmológica em uma
auto-consciência e colocou o homem como centro do mundo; todavia, as produções de
Descartes, dos iluministas e a “inauguração” da sociedade da produção, da ciência e da
técnica inventarão um homem que pensa, se pensa e pensa outros homens isoladamente.
Acreditando que apenas a razão seria capaz de produzir a verdade. Esta razão, que só
poderia aflorar com o homem livre de todas as influências, com o pensador autônomo,
universalmente desprendido, como sujeito descorporificado, fora do mundo que o
produziu homem, gerou, além de uma objetificação do sujeito, uma pretensa
neutralidade na produção dos saberes científicos.


       A imagem-memória maquínica será impressa na corporeidade moderna. Esta
passará a fazer parte das nossas analogias para interpretar os sujeitos, os espaços, a
natureza, as cidades, a educação e o próprio mundo vivido. A imagem-memória
maquínica sugere uma hierarquia e uma mecânica na qual o trabalho das partes é
essencial para o funcionamento do todo, porém, sem identificar que parte e todo estão
interconectados em uma trama, que o uno e o múltiplo estão presentes um no outro.
Essas imagens se multiplicaram e, posteriormente, as técnicas taylorizadas, a medicina
social, a escola, as técnicas de higiene, os cuidados de si, a lógica empresarial e a mídia,
estas já no início do século XX, tentarão transformar os indivíduos em impressos da
ordem.


         A “verdade” passou a ser produzida pelo trabalho histórico, político e
econômico, sendo dependente de um querer-fazer o progresso desejado pelos setores
dominantes. Conhecer deixou também de significar uma aproximação com Deus. O
saber se entrançou com a produção de coisas materiais e com a ordenação do mundo. O
trabalho com as mãos, que, na maioria dos países europeus, inclusive e especialmente
em Portugal, não era considerado como algo de valor, recebeu um outro tratamento a
partir da racionalidade maquínica e, segundo Sant’Anna (1996), a burguesia industrial
encontra uma justificativa laica e funcional para o trabalho dos homens. O corpo torna-
se uma máquina funcional e rentável, um mecanismo que deveria saber transmitir e
transformar movimentos em produção.


         Os lugares fundados e a idéia de vida comunitária perdem a força e uma nova
cultura vai sendo tramado por esse novo homem que produz e se produz na
ambigüidade dos desejos de se corporificar e da descorporificação produzida pela razão
dominante.


2.3- Coser a ponto largo, como preparo de costura
                       A primeira das grandes operações da disciplina é então a
               constituição de <<quadros vivos>> que transformam a multidões
               confusas, inúteis ou perigosas em multidões organizadas. A constituição
               de <<quadros>> foi um dos grandes problemas da tecnologia
               científica, política e econômica do século XVIII; arrumar jardins de
               plantas e de animais, e construir ao mesmo tempo classificações
               racionais dos seres vivos; observar, controlar, regularizar a circulação
               das mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro econômico
               que possa valer como princípio de enriquecimento; inspecionar os
               homens, constatar sua presença e sua ausência, e constituir um registro
               geral e permanente das forças armadas; repartir os doentes, dividir com
cuidado o espaço hospitalar e fazer uma classificação sistemática das
              doenças: outras tantas operações conjuntas em que os dois constituintes
              – distribuição e análise, controle e inteligibilidade – são solidários. O
              quadro do século XVIII é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um
              processo de saber. ( Foucault, 1987:135)

       A partir do século XVIII, uma visão de mundo e de conhecimento vai dominar a
cultura da elite e tornar-se hegemônica nos vários espaços europeus. A população
deveria ser educada dentro dos novos moldes; aquelas corporeidades que traziam
impressos muitos traços da cultura medieval eram antitéticas às novas formas de
produção de riquezas e de conhecimentos. Vão sendo gerados novos conhecimentos e
os que dominarão o cenário europeu serão aqueles articulados ao mundo da produção e
à organização da população em torno da produção industrial, embora a estruturação da
vida se altere não apenas pela alteração da forma de organização econômica. Toda uma
rede de saberes,dos vários tempos históricos e de memórias, vai interagir nos fazeres
corporais da sociedade, mas uma forma vai se tornar dominante.


       A burguesia francesa, a inglesa a espanhola e a portuguesa, enredadas à nobreza,
à intelectualidade e, ao contraditoriamente, ao clero, dominarão o panorama político-
cultural. Apropriando-se da racionalidade organizativa da Igreja e de certos
maneirismos da nobreza, mas inserindo-se no fazer certas práticas corporais
engendradas pela racionalidade que toma a competição, o individualismo, a velocidade
e a ordenação como elementos próprios de sua constituição, a burguesia se compreende
como superior a todas as classes. Ela se coloca como a inauguradora de um novo tempo,
de uma nova forma de vive e produz políticas que marcarão no corpo moderno as
imagens-memórias que ainda hoje fazem muitos de nós crermos ser esta a melhor, e
única forma possível, de viver no mundo contemporâneo.
       A imagem-memória do homem moderno vai se fixar dual. Ela é a de uma cabeça
que pensa, ou que deveria pensar, e de um corpo que precisa ser dominado pela razão.
Não há corporeidade, mas um indivíduo, isolado dos demais, que se responsabiliza pelo
seu sucesso e pelo seu fracasso no mundo da produção. Por ter um corpo, o homem
moderno deve ser capaz de domina-lo para chegar ao sucesso. As várias ciências que
nascem no século XVIII vão produzir leituras sobre este homem, cada uma nos limites
de suas barreiras disciplinares e a imagem-memória de corpo que dominará será a do
corpo máquina, mais um mecanismo da racionalidade capitalística.
Manacorda (1996) nos conta que o modo de produzir os bens materiais
necessários à sociedade transformou-se profundamente. Do domínio da forma artesanal
individual de produção(ou de pequenos grupos de iguais) transmuta-se para as oficinas
associadas às respectivas corporações de artes e ofícios. Deste passa-se a uma fase de
iniciativa do mercador capitalista que, esquivando-se às corporações, destina a matéria-
prima e o processo produtivo a indivíduos dispersos e não-associados, mas contratados
por ele (p.270). Logo a seguir, identifica-se o aparecimento da cooperação simples,
onde, sob novas relações de propriedade e concentrados em uma só oficina,reúnem-se
os artesões, antes dispersos. Porém, o modo de trabalhar permanece essencialmente o
mesmo.


                     Em um momento posterior, da cooperação simples passa-se para
              a manufatura, com a qual se efetua uma primeira divisão do trabalho,
              ou melhor, de rotina operativa, dentro de cada setor de produção e de
              cada estabelecimento, através do qual cada trabalhador realiza sua
              “arte”. Por último, devido à crescente intervenção da ciência com força
              produtiva, passa-se ao sistema da fábrica e da indústria baseada nas
              máquinas, em que a força produtiva não é mais dada pelo homem, mas
              pela água dos rios,primeiro, e pelo carvão mineral, em seguida; e a
              máquina realiza as operações do homem, já reduzido a um simples
              acessório da máquina. (Manacorda, 1996:270)

       O processo de transformação das formas de produção se imbrica com os
processos de transformação da cultura, com a produção de conhecimento e com o que se
torna ou deixa de ser considerado como conhecimento. Manacorda nos lembra que o
aprendizado que passa de mestre para aprendiz, de pai para filho, que estava presente na
sociedade ocidental desde o antigo Egito, conforme atesta Platão, e que se constituiu no
conhecimento dos trabalhadores artesanais da Idade Média transformou-se em um não-
saber. O saber para a produção deslocou-se do grupo de artesões que dominavam a
técnica para a “moderníssima ciência da tecnologia”. Os homens e as mulheres comuns
tornam-se ignorantes por já não terem os conhecimentos de todo o processo produtivo.
Com o renascimento e com o Humanismo, houve um deslocamento do foco dos
conhecimentos. Saber tornou-se uma ação de todos os homens, todos, com sua
capacidade mental poderiam conhecer o mundo, as formas do mundo e transformar o
mundo. Contudo, com as mudanças na forma de organização do trabalho, na produção
cientifica e tecnológica, os homens e as mulheres comuns passaram a ser identificados
como não-sabedores, pois o saber, que havia sido libertado dos muros dos mosteiros,
tornou-se enclausurado pela racionalidade maquínica que passará a dominar a imagem-
memória de mundo no século XVIII. Conhecer tornou-se maquinar, mas não eram todos
que podiam maquinar; era preciso ser aceito na ordem do discurso. Tornou-se
indispensável passar pelos rituais de iniciação e de aceitação produzidos nos espaços de
poder de uma ciência positiva. O homem e a mulher comuns já não eram sabedores,
suas mentes estavam repletas de imagens-memórias que não correspondiam à realidade
do mundo. Além disso, eles não conheciam as regras, as maneiras de se comportar com
disciplina, não sabiam sequer usar de forma correta os mecanismo que estavam sendo
produzidos a serviço de uma elite que busca, na produtividade, a marca de uma nova
época para a civilização humana.


       Foucault (1992) nos conta que, no campo da produção de conhecimentos
científicos, a comparação realizada pela medida assumiu um papel preponderante,
reduzindo a observação do mundo em relações aritméticas de igualdade e de
desigualdade. O semelhante, que foi durante muito tempo categoria fundamental do
saber, foi dissociado numa análise feita em termos de identidade e de diferença.


       Dois caracteres essenciais passaram a dominar. O primeiro, o das relações entre
os seres humanos, que foram realmente pensados sob a forma da ordem e da medida, e
que tiveram como desequilíbrio fundamental o de se poder sempre reduzir os problemas
da medida aos da ordem. O segundo referiu-se ao aparecimento de uma série de
domínios empíricos, que até então não tinham sido nem formados nem definidos, que
se constituíram tendo por base uma ciência da ordem.


       A colocação em ordem, por meio dos signos, passou a constituir todos os saberes
da identidade e da diferença. Se, no século XVI, a semelhança estava ligada a um
sistema de signos e era sua interpretação que abria o campo dos conhecimentos
concretos, a partir dos século XVII, a semelhança é repelida para os confins do saber,
do lado de suas mais baixas e mais humildes fronteiras. Lá, ela se liga à imaginação,às
repetições incertas, às analogias nebulosas (Foucault, 1992:86). Para o projeto de
ciência geral da ordem, ou teoria da disposição em quadros ordenados das identidades e
das diferenças, devia-se, a um tempo, designar muito precisamente todos os seres
naturais e situá-los ao mesmo tempo num sistema de identidades e de diferenças que os
aproxima e os distingue dos outros. A história natural deve assegurar, num só
movimento, uma designação certa a uma derivação controlada (p.153).


       Essa concepção de ciência se entrelaçou com a necessidade de organização da
vida nas cidades, que se estenderam para além dos limites de seus muros, e da
população, que perdeu os contornos definidos. Participavam da feira pessoas de várias
localidades, algumas iam ficando, outras chegando e outras partindo sem nem mesmo
terem sido vistas por membros da elite local. Já trafegavam nas primeiras ruas modernas
alguns veículos particulares, e seus passageiros, isolados, desejavam, inicialmente, um
distanciamento daquela realidade anárquica da cidade. Como o anárquico se torna um
panorama comum e antagônico aos anseios da classe que assume a liderança política e
cultural da sociedade, algumas tecnologias serão produzidas no sentido de disciplinar a
multidão nos diferentes espaços da sociedade que estava sendo criada. Era preciso ter
uma imagem objetiva da população, colocando cada coisa em seu lugar e dando nome
às coisas. A ciência e a filosofia também produzem uma imagem-memória de si, que
possibilita saber onde cada coisa está. Assim, Marilena Chauí(1994,p.17), partindo
sobretudo do pensamento para que filosofia?
                      “A filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os
              procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão
              crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é
              uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações
              das obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem
              psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e
              métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas a
              interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem a natureza e as
              formas do poder. Não é história, mas interpretação do sentido dos
              acontecimentos enquanto inseridos no tempo e na compreensão do que
              seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento da ação humana,
              conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do
              agir, conhecimento das mudanças das formas do real ou dos seres; a
              Filosofia sabe que está na História e que tem uma história.(Chauí, 1994)

              A autora nos fala da filosofia, que somente se realiza pela reflexão.
Diante do processo de reflexão, o homem percebe-se como um ser de transcendência.
Enfim, a transcendência é mesmo possível? Estamos convencidos de que sim.
       Portanto, ao perceber-se como um ser livre, o homem passa também a entender
que pode mudar as condições materiais em que está inserido, se assim desejar. Ao fazer
isso, ele altera não apenas as suas relações com a natureza, mas, a sua própria relação
com os demais atores sociais. Desse modo, a transcendência significa que podemos
historicamente alterar as condições em que fomos formados. Ao termos consciência de
que podemos mudar tais condições, percebemos que dias melhores virão, se assim
desejarmos.
É por esta razão que se justifica, mais uma vez, a importância da Filosofia em nosso
cotidiano como educadores: ela impede a estagnação e dá sentido à experiência. Por
exemplo: será que eu, diante do meu fazer pedagógico, posso contribuir para que a
transcendência possa ocorrer com meu aluno? Será que eu posso contribuir para que
as crianças cresçam de forma autônoma?”(Aldry, artigo para o Jornal “EntreRios”,
4.06.05)


       Em aula, quando abordamos a diferença entre o conhecimento filosófico e o
senso comum, procuramos fazer distinção à luz do pensamento de Platão. Muito embora
ele tenha estabelecido vários níveis de compreensão da realidade, destacamos os dois
principais: a doxa e a episteme. Um ator social que vive no âmbito da doxa (opinião)é
alguém que localiza sua existência apenas no senso comum. Pensar os problemas a
partir da episteme (ciência) é pensá-los à luz da filosofia. Essa expressão designa a
capacidade de olharmos para os fenômenos de maneira sistematizada. Uma reflexão
somente é sistemática se for rigorosa, radical e de conjunto. Para explicar a importância
desses conceitos dentro do processo do filosofar, valêmo-nos do comentário realizado
por Maria Lúcia de Arruda Aranha.(2002).
                     A filosofia é radical porque vai até as raízes da questão. A
              palavra latina radix, radicis significa literalmente “raiz” e, no sentido
              derivado, “fundamento”, “base”. Portanto, a filosofia é radical é
              rigorosa porque, enquanto a Filosofia de vida não leva suas conclusões
              até as ultimas conseqüências, o filósofo especialista dispõe de um
              método claramente explicitado, que permite proceder com rigor,
              garantindo a coerência e o exercício da critica. Para justificar suas
              afirmações com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa, que
              permite definir claramente os conceitos, evitando a ambigüidade típica
              das expressões cotidianas. Para conseguir essa linguagem o filósofo
              inventa conceitos, cria expressões novas ou altera e especifica o sentido
              de palavras usuais. A filosofia desenvolve uma reflexão de conjunto
              porque é globalizante, examina os problemas sob a perspectiva do todo,
              relacionando os diversos aspectos. Enquanto as ciências examinam
              “recortes da realidade, a filosofia além de poder examinar tudo(porque
              nada escapa ao seu interesse) também visa o todo, a totalidade. (Aranha,
              2002, p.107)
Desse modo, ousamos a afirmar que toda forma de analfabetismo contribui para
que o homem permaneça no senso comum, estando sujeito à toda forma de alienação.
Razão pela qual o processo do filosofar torna-se relevante para o fazer pedagógico.
Alfabetizar pode significar a superação do senso comum, rumo a uma postura crítica da
corporalidade.
       Vários acontecimentos do mundo das ciências, da filosofia, da produção e da
política se entrelaçaram contribuindo para acelerar os processos de transformações
político-culturais e para redefinir as imagens-memórias que dominarão o mundo
Moderno europeu.


2.3.1- Momentos irreversíveis e ampliados nos corpos modernos


         Cadáveres,lixos e matérias fecais se amontoavam nas ruas medievais e
continuaram a amontoar-se durante muito tempo, pois os odores que deles exalavam
pouco atingiam a sensibilidade dos passantes, moradores e habitantes que com eles
conviviam lado a lado, apesar da crescente tendência de separação que, até o século
XIV, se dava de modo embrionário. A partir de XVII, entretanto, a separação assume
um caráter de política pública contra o amontoamento.Estas políticas trazem em si um
desejo de saber que também é poder, pois quer destinar um lugar e um tempo
específicos para cada coisa. A esta pretensão vem responder os hospitais, as escolas, os
presídios, os bairros populares, os salões de festas, os locais de trabalho, as calçadas, as
ruas retas (Rodrigues, 1999:111) e também o quarto do casal, a latrina individual e
outros lugares separados na organização social. Estes lugares se tornarão espaços de
adestramento, de higienização, de demarcação e de maior controle das subjetividades.


       As cidades cresceram pelo afluxo ininterrupto de agricultores sem terra e
também pela diminuição da morbidez e aumento da natalidade. Rodrigues (1999;106)
nos conta que, em 1500, havia cerca de 80 milhões de pessoa no continente europeu e,
em 1800, tal número mais que duplicou, beirando 190 milhões. Continua o autor:
              Em 1500, segundo dados de Fernand Braudel(1975), havia apenas
       quatro cidades com mais de cem mil habitantes (Istambul, Nópoles, Paris e
       Veneza), mas em 1800 havia vinte e três. Em 1700, mais de três quartos da
       população britânica ainda vivia no campo; em 1851, os habitantes da cidade
       eram maioria ( Thomas, 1988). Em Londres [...] contavam-se quarenta mil
       pessoas no século XIV e mais de um milhão no princípio do XIX.
A velocidade das mudanças e das ruas se intensificou e o processo de
transformação no mundo do trabalho fez afluir dos campos homens e mulheres, velhos,
jovens e crianças para as cidades. Esses trabalhadores se amontoavam nas habitações
medievais de um único cômodo ou dois, onde cozinhavam, dormiam, se lavavam e
realizavam as práticas sexuais. Rodrigues (1999) nos ajuda a lembrar que, na Idade
Média,
                        a verbalidade relativa ao corporal ainda não havia sofrido a
                separação puritana e iluminista que inventou, para falar do corpo, uma
                língua respeitável (de elite) e outra bastarda(popular). O corpo
                medieval ainda não era objeto de um discurso moralista: era referido
                por uma fala singela, rica em conteúdo mítico, mas pobre de ‘isto-é-
                certo-isto-é-errado’ ou de ‘pode-não-pode’. Do corpo se falava também
                por meio de representações, de gestos e de canções lascivas, sempre se o
                concebendo com uma espécie de alegre obscenidade, materializada em
                um simbolismo que nos pareceria grosseiro. Do ponto de vista de nossa
                sensibilidade, o medieval seria antes de tudo um corpo ‘indecente’.(p.85)

         Todos juntos, velhos, adultos, jovens e crianças, vivendo uma corporeidade bem
pouco limitada. Foucault (1988) nos conta que, até o início do século XVII,
                       ainda vigorava uma certa fraqueza. As práticas não procuravam
                o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as coisas,
                sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante
                familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseira, da obscenidade,
                da decência, se comparados com os do século XIX. Gestos diretos,
                discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e
                facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo nem
                escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos “pavoneavam”. (p.09)

         As cenas que hoje denominamos “privadas”, como evacuação, a lavagem das
‘partes’, o parto, a menstruação, a morte e as relações sexuais ocorriam em espaços não
separados, pois não havia quartos individuais, de forma generalizada, e mesmo entre as
pessoas mais abastadas, os leitos conjugais não eram separados dos outros ambientes,
nem mesmo por cortinas.


         A palavra higiene ganhou nova conotação enlaçando a vida pública e a privada e
ocupando um lugar inédito. Vigarello (1996), estudando os manuais de saúde,
identificou a mudança de seus nomes e a “higiene” assumiu uma conotação de conjunto
de dispositivos e saberes que favoreciam a manutenção da saúde. Uma cátedra de
higiene foi criada na Faculdade de Medicina de Paris. Os medos e as inseguranças
transformaram-se em insanidade mental, impotência, histeria e alcoolismo. Os
amontoados passaram a ser identificados como espaços de contaminação; o mito da
sífilis e de outras doenças consideradas hereditárias transformou o desejo e o ato sexual
em “máquina infernal” e um certo pânico conduziu indivíduos da elite a uma tensão
permanente, e a população em geral à angústia. Uma revolução aconteceu, quando as
autoridades produziram uma cruzada para desodorização e limpeza das cidades, pois as
populações resistiram, linhas de fuga e mecanismos múltiplos de burla e ocultação
foram produzidos. Entretanto, para aumentar o controle, especialmente sobre os menos
abastados, foram sendo criadas novas tecnologias institucionais. Na França, nos conta
Rodrigues (1999), o cargo de intendente-geral da polícia, foi instituído em 1665 e,
                      em 1757 se definiu um primeiro “código de polícia”, cujo
              objetivo era fazer que as pessoas vivessem “civilizadamente”, isto é, de
              modo cultivado, polido ou refinado, excluindo tudo o que parecesse
              bárbaro, irracional ou governado pela confusão. Polir (limpar), policiar
              (vigiar), ser polido(bem-educado), ‘política’(poder) pertencem ao
              mesmo campo semântico e se entrelaçam no mesmo processo histórico
              de vigiar, inspecionar, relatar, delatar, alertar, controlar, regulamentar,
              proibir, intervir, constranger...(1999:14)

       Foucault (1988) afirma que, na época clássica, houve uma descoberta do corpo
como objeto e alvo de poder; nasceu um corpo que se podia manipular, ser treinado,
tornar-se obediente, hábil e com uma quantidade multiplicável de força. Um corpo que
podia ser impresso, tatuado pela racionalidade que se produziu dominante e que foi
engendrando novas práticas corporais na cultura.


       Trompson (1991) nos conta que, ainda no século XVIII, havia uma forte
presença de tempo de trabalho orientado pela obrigação profissional, pela tarefa a ser
cumprida. Esta, na maioria das vezes, se organizava a partir do tempo da natureza e não
do tempo do relógio. Relata-nos o autor que, em uma petição da cidade de
Sunderland,em 1800, estão escritas as seguintes palavras: “considerando que esta
cidade é um porto de mar em que muitas pessoas são obrigadas a estar a pé toda a
noite para vigiaras marés e cuidar dos seus afazeres no rio”. Esta cidade se regulava
pelo ritmo das marés; assim como outras, na época das colheitas, vivienciavam o
trabalho de sol a sol, o que parecia “natural” numa comunidade de agricultores, pois
a natureza obrigava a recolher o cereal antes que o mau tempo apareça(p.48). Contudo
o autor nos afirma que a orientação do tempo pela tarefa tornou-se mais complexa
quando a    economia familiar e comunal se transmuta e inicia-se o processo de
contratação do trabalho.
Logo que se alugam braços de trabalho, a orientação passa a ser
              calculada pelo relógio (...) Esta medida do tempo expressa uma relação
              simples. Os que estão empregados experimentam a distinção entre o
              tempo do patrão e o seu “próprio” tempo.E o empresário tem de utilizar
              o tempo dos seus empregados, tem de fazer com que ele não seja
              desperdiçado. Já não trata de uma tarefa, o que pontifica é o valor do
              tempo reduzido a dinheiro. O tempo torna-se dinheiro – não passa,
              gasta-se.


       Assim, a imagem-memória de tempo se articulou à produção de riquezas, mas
também à de disciplina corporal. O corpo precisava ser moldado para a produção no
tempo e no espaço modernos que vai se constituindo. Descartes iniciou um caminho de
registro anátomo-metafísico., uma racionalidade objetificante dos sujeitos corpóreos,
que foi seguida por médicos, filósofos, cientistas e pedagogos. Surgiu um conjunto de
regulamentos e de processos empíricos para controlar ou corrigir as operações do corpo,
as operações políticas que se ocuparam tanto da submissão e da utilização, como do
funcionamento e da explicação do corpo útil e inteligível. Para a produção do homem
moderno não bastava apenas tratar do corpo de uma maneira geral; foram produzidas
minuciosas táticas, forças de coerção sem folga, que buscaram tanto a economia e a
eficácia dos movimentos, como uma nova organização interna da subjetividade. Foram
sendo produzidas novas imagens-memórias de mundo e estas impressas a ferro e fogo
nas subjetividades que se viam compelidas à transformação de suas práticas corporais.
A Escola Moderna será identificada como uma das instituições externas à fábrica que
deveria entrar nesta trama para imprimir, nos corpos da juventude, a imagem-memória
do bom uso do corpo para melhor aproveitamento do tempo e do espaço.


       Um esquadrinhamento do tempo, do espaço e dos movimentos do corpo foi feito
e em uma rede se articularam os vários disciplinadores da época com seus métodos,
estudos e propostas de políticas públicas. Os processos disciplinares, que já existiam há
muito tempo, se tornaram fórmulas gerais de dominação nos séculos XVII e XVIII,
produzindo uma anatomia política do corpo. Prostíbulos, escolas, quartéis, hospitais,
presídios, passaram a ser interpretados como necessitando de vigília constante das
autoridades sanitárias e os sujeitos que transitavam nestes espaços, precisavam ser
vigiados pelas autoridades internas. O contato entre os corpos deveria ser mínimo, e,
para manter a saúde e o vigor físico, a atividade física transformou-se em uma nova
verdade.Foucault (1987) nos fala que
                     O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce
              uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas
              habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de
              uma relação que no mesmo mecanismo o torna mais obediente quanto é
              mais útil, e inversamente. Forma-se uma política das coerções que são
              um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus
              elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano
              entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o
              recompõe. Uma <<anatomia política>>, que e também igualmente uma
              <<mecânica do poder>>, está nascendo; ela define como se pode ter
              domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o
              que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas,
              segundo a rapidez e a eficácia que se determina. (p.127)

       A disciplina é compreendida como o caminho para fabricar corpos submissos e
exercitados, corpos dóceis adaptáveis ao mundo moderno.


       Mas, o que é moderno?
       A palavra “moderno” foi empregada pela primeira vez no final do século V e
marcava o limite entre o presente cristão e o passado pagão. Ser moderno, no entanto,
foi assumindo uma conotação de transição do antigo para o novo e as idéias iluministas
francesas, que atribuíram ao conhecimento cientifico os ideais de perfeição, colaram ao
conceito de modernidade a imagem-memória de avanço seguro, rumo ao
aprimoramento social e moral. O passado clássico romântico e tradicional deveria ceder
lugar ao presente-futuro de desenvolvimento racional e técnico.Essa necessidade de
avançar rumo ao futuro ajudou a confirmar uma noção de temporalidade igualmente
destruidora e produtiva. O passado foi deslocado para o campo do ultrapassado; a busca
incessante no presente passou a referir-se aos rumos do futuro. Essa busca, no entanto,
foi feita a partir de uma subjetividade consumista que acelerou a história gerando um
cotidiano produzido pela sensação de “falta do presente”.


       No mundo social intensificou-se a preocupação com a quantificação do tempo e
a delimitação dos espaços. O relógio passou a mostrar os minutos expressando uma
concepção de que, no conceito moderno de tempo, a precisão é fruto e flor para o
desenvolvimento cientifico e tecnológico. A modernidade é o lócus da história do
aprimoramento e da universalização do relógio, da cronometragem do tempo e também
da ordenação dos espaços nas cidades. No mundo pré-moderno, havia um tempo
local,majoritariamente regido pelos sinos das igrejas das vilas e pela demanda da
natureza que representavam um critério muito elástico de tempo; as necessidades da
corporeidade obedeciam ao fluxo da interação com a magia da natureza; e o trabalho
seguia o fluxo das necessidades de manutenção do grupo familiar ( e do pagamento dos
impostos). No mundo moderno, especialmente no industrial, o relógio passou a ser um
critério rigoroso, mais preciso do tempo astronômico e mais diretamente articulado ao
trabalho humano e à produção de riquezas.


Thompson (1991) nos conta que
                     Na última década do século XVIII abundávamos relógios;
             começava a pensar-se mais em termos de “necessidade” do que em
             “luxo”, até os camponeses poderiam possuir relógios por menos de vinte
             xelins.Não podem restar dúvidas de que se estava a assistir a uma
             grande difusão do relógio, ocorrendo (como seria de esperar) no
             momento exato em que a Revolução Industrial exigia uma maior
             sincronização do trabalho. (p.56)
       Vai sendo criada uma imagem-memória do tempo para organizar as práticas
corporais, uma disciplina eu precisa ser impressa nos corpos, especialmente dos
trabalhadores. Contudo, esta não foi de fácil imprinting na corporeidade dos ingleses de
uma hora para outra, nem nas corporeidades dos europeus. Segundo Thompson (1991),
os passos preliminares da Revolução Industrial levaram tanto tempo a definir-se que,
nas zonas industriais do início do século XVIII, se criou uma cultura
popular,licenciosa, que punha os cabelos em pé aos propagandistas da disciplina
(p.67). As camadas populares inglesas eram vistas como degenerados, como vilãos,
insolentes, preguiçosos, bêbados e pessoas que desprezavam a lei e a autoridade. Era
preciso disciplinar a corporeidade daquela gente para que o progresso anunciado pela
classe emergente se concretiza-se. Vários mecanismos vão sendo adotados para
disciplinar o comportamento daquela população que resistia à cultura que precisa da
disciplina para se faze poder.
29




       O controle do corpo, a partir do controle do tempo e do espaço, se
metamorfoseou da velha herança monástica e Foulcault (1987) nos conta que, na
França, o controle do tempo se difundiu rapidamente a partir do modelo disciplinar que
muito cedo foi encontrado nos colégios, nas oficinas e nos hospitais.
                    Dentro dos antigos esquemas, as novas disciplinas não tiveram
            dificuldades para se abrigar; as casas de educação e os
            estabelecimentos de assistência prolongavam a vida e a regularidade
            dos conventos de que muitas vezes eram anexos. O rigor do tempo
            industrial guardou durante muito tempo uma postura religiosa; no
            século XVII, regulamento das grandes manufaturas precisava os
            exercícios que deveriam escandir o trabalho.(p.136)
       O tempo disciplinar medido e pago deveria ser um tempo puro, sem
perturbações e de boa qualidade; para que isso acontecesse o corpo precisaria ficar
aplicado à tarefa que
lhe estaria destinada. O tempo disciplinar é um tempo integralmente útil em que a
exatidão, a aplicação e a regularidade são virtudes fundamentais. Marx (1988), um
homem que viveu no século XIX, quando desenvolveu suas análises sobre a mercadoria
, falou-nos que a força conjunta de trabalho da sociedade, não abstante ela ser composta
de inúmeras forças de trabalho individuais, passou a operar como força de trabalho
socialmente média, contanto que na produção de uma mercadoria não fosse consumido
mais que o trabalho em média necessário ou tempo de trabalho socialmente necessário.
                      Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido
              para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de
              produção socialmente normais, e com o grau social médio de habilidade
              e de intensidade de trabalho.(...)

                     O valor de uma mercadoria está para o valor de cada uma das
              outras mercadorias assim como o tempo de trabalho necessário para a
              produção de uma está para o tempo de trabalho necessário para a
              produção de outra. (...)
A grandeza de valor de uma mercadoria permaneceria portanto
                    constante, caso permanecesse também constante o tempo de trabalho
                    necessário para sua produção.(p.48)

          Assim, Marx30 identificou, no próprio século XIX, uma articulação entre a
produção, a mercadoria, o tempo e o trabalho e nos ajudou a saber um pouco mais sobre
a formação da cultura moderna. Marx captou o espírito do que se tornou o conceito de
tempo hegemonicamente presente tanto na sociedade como na ciência moderna. O
tempo foi
relacionado com a produção, com a geração de riqueza, time, nesta perspectiva, is
money e, para produzi-lo, foi preciso que a sociedade e o pensamento de cada sujeito se
disciplinassem, enquadrando forma de pensar e de viver no mundo com o paradigma
científico-político dominante.


_______________
29 A máquina foi o instrumento usado pelo capitalista para reunir os trabalhadores em um mesmo lugar, onde seria possível
controlar melhor o aproveitamento do tempo e das matérias primas.




                                                                                   30




          No que se refere ao espaço, é indispensável destacar que a disciplina exige a
cerca, que fecha em si mesma os iguais e separa os diferentes.Surgiu a localização
funcional que buscou codificar o espaço arquitetônico. Os lugares se definiram para
satisfazer não só a necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas
também de criar um espaço útil. Produz-se como imagem-memória de lugar: o
quadriculamento.Esta possibilita a localização imediata, pois coloca cada indivíduo no
seu lugar e em cada lugar um indivíduo. Deviam-se evitar as distribuições por grupos;
decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou
fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quanto corpos ou
elementos há a repartir (p.131). A disciplina organizou um espaço analítico.


       A produção das novas impressões tece minúcias para penetrar o corpo e exercer
sobre ele seu poder. Segundo Foucault (1987), define-se uma espécie de esquema
anátomo-cronológico do comportamento, onde o ato é decomposto em seus elementos
(p.138). O corpo e os gestos são postos em correlação e o controle disciplinar não
consistirá simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; torna-se
indispensável uma articulação entre um gesto e a atitude global do corpo, para se
produzir uma condição de eficácia e de rapidez. Na escola, uma boa caligrafia, por
exemplo, supõe uma ginástica – uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por
inteiro, da ponta dope à extremidade do indicador (idem, ibidem). O olhar detalhado
das inspeções, o controle das atividades dos estudantes e dos professores, o
estabelecimento dos lugares, das horas certas para fazer cada coisa, a determinação de
fileiras para sentar e de filas para entrar ou sair da sala de aula são algumas das táticas
desta anatomia política do detalhe sobre as práticas corporais.


2.3.2 – Sociedade, sistema escolar, conhecimento e imagens-memórias máquinas


       Na segunda metade do século XVIII, os reis já não governavam arbitrariamente
e outras vozes se faziam ouvir na produção da vida governamental; e estas vozes não
eram as do clero. Reis, como Luiz XIV, por exemplo, eram prisioneiros de processos
sociais e dependentes de cliques e facções da corte, algumas das quais se prolongavam
extensa e profundamente pelos pais e nos círculos da classe média (Elias, 1994c:97).
Essa fisiocracia não se limitava apenas à economia, mas se inseria na vida política e
social intervindo nas transformações e manutenções da cultura e se articulavam,
especialmente na França, com os cientistas e com a burguesia comercial e industrial.


       A vida política nos Estados Modernos se enlaçou fortemente com os
conhecimentos científicos    e tecnológicos, mas também com a produção de novas
práticas corporais que se articulam a uma moral disciplinar. Na sociedade moderna a
racionalidade cientifica vai dominar, chegando mesmo a ser considerada como a única
forma verdadeira de conhecimento, conforme já tratei na primeira parte deste trabalho.
O Estado se assume como educador, baseando suas políticas públicas nos
saberes produzidos neste mundo cientifico. As ações do Marques de Pombal, em
Portugal do século XVIII, apresentam-se como bons exemplos desta articulação entre
educação, Estado e ciência modernos.


       Realizando a primeira reforma do ensino, na Europa Moderna, Marquês de
Pombal31, em 1722, antecipou as reformas que surgiram em outros países. Sua
pretensão, além




                                                                 31


de acabar com a hegemonia da Igreja na educação, era acabar com o verbalismo da
cultura educacional portuguesa e fazer da universidade uma instituição voltada para a
ciência aplicada. A nova universidade deveria voltar-se para a formação de uma elite
renovada, capaz de identificar as riquezas naturais do Reino e explora-las. A nova
universidade seria uma peça essencial ao projeto de tornar Portugal uma nação rica e
próspera.


       A ciência passou, em Portugal a ser identificada com o saber da natureza
colocado a serviço do progresso material. Paim (1982) afirma que a geração formada
pela universidade pombalina estava preocupada exclusivamente com a formação técnica
e somente desta iria cuidar quando o Brasil tornou-se sede da Monarquia.


       No processo da Revolução Francesa, a partir de 1789, no entanto, foi que se
concretizou a idéia de uma escola laica, a cargo do Estado, não apenas na França como
em diversos países europeus. Institucionalizou-se a instrução pública, transformando a
seleção20 e a formação de professores para os estabelecimentos de ensino em uma
preocupação, pois não se tratava apenas de dar a toda a população acesso ao ensino
“primário”, mas de faze-lo conforme os ideais dos grupos no poder e a vontade de
transformar a cultura popular urbana, ainda carregada de referenciais medievais, em
cultura apropriada ao convívio urbano, no mundo do trabalho capitalista que se
organizava.
____________
20 Tanuri (2000:62)nos informa que Antes que se fundassem as primeiras instituições destinadas a formar professores para as
escolas primárias, já existiam preocupações no sentido de seleciona-los.
          Os Estados Modernos vão se atribuindo a tarefa                               de educar a população.
Manacorda (1996:247) nos conta que a frase da imperatriz da Áustria, Maria Teresa, em
1760 - a instrução é e sempre foi, em cada época, um fato político – marca a história da
educação pública, pois a coloca como uma questão política do Estado. Na segunda
metade do século XVIII, houve a supressão, de fato e de direito, das corporações de
artes e ofícios, e também da aprendizagem artesanal como forma popular de instrução.
                           Este duplo processo, de morte da antiga produção artesanal e de
                    fábrica, dera espaço para o surgimento da moderna instituição escolar
                    publica. Fábrica e escola nascem juntas: as leis que criam a escola de
                    Estado vêm juntas com as leis que suprimem a aprendizagem
                    corporativa(e também a ordem dos jesuítas). (Manacorda,1996:249)

          A escola do Estado, mesmo com um certo apoio das escolas clericais, não
conseguiu de imediato assumir toda a população infantil. Podemos dizer que foram
gerados dois campos diferenciados de infância, sem uma correspondência de classe
social: de um lado, o das crianças escolarizadas e de, outro aqueles que, segundo hábitos
imemoriais, entravam diretamente na vida adulta assim que seus passos e suas línguas
ficavam suficientemente firmes(Áries, 1981:192). A população escolar não estava
marcada pelos contornos das condições sociais como hoje a identificamos. As escolas
populares eram freqüentadas por pequenos-burgueses e as classes iniciais dos colégios
estavam cheias de pequenos artesões e camponeses, pois, até o século XVIII, havia uma
escola única, onde os hábitos de escolaridade diferiam menos segundo as condições
sociais do que segundo as funções desta. Contudo, ainda no século XVIII, a escola
única foi substituída por um sistema de ensino duplo, em que cada ramo correspondia
não a uma idade, mas a uma condição social: o liceu ou o colégio para os burgueses (o
secundário) e a escola para o povo(o primário) (Áries, 1981:192)
É importante, todavia, estarmos atento para o fato de que não houve uma
programação prévia para estes acontecimentos dos séculos XVIII e XIX. Toda uma
sensibilidade na relação da família com as crianças foi se alterando desde o final do
século XVI. Surgiram sinais de uma nova relação com a criança nos meios mais
abastados das cidades, mas não se tratava apenas de novas demonstrações de
afetividade. Aparecia uma vontade cada vez mais reafirmada de salvar a vida, de tratar e
sarar os filhos. Áries (1981) nos conta que entre o fim da Idade Média e os séculos XVI
e XVII, a criança conquistou um lugar junto a seus pais, lugar este que não existia no
período anterior cujo costume mandava que fosse confiada a estranhos.
              A criança tornou-se um elemento indispensável da vida cotidiana, e os
       adultos passaram a se preocupar com sua educação, carreira e futuro. Ela não
       era ainda o pivô de todo o sistema, mas tornara-se uma personagem muito mais
       consistente.(p.270).

       A demanda por cuidados, de início mais presente na área médica, se expandiu
chegando aos aspectos pedagógicos. A partir do século XVIII, toda uma tecnologia é
produzida para preserva a vida dos jovens e educa-los conforme os moldes que também
estão sendo produzidos por essa nova civilização. Políticos, médicos, educadores,
cientistas, padres e filósofos elaboraram e colocaram em prática múltiplas maneiras para
conduzir esses jovens no caminho certo. O corpo jovem e individualizado separou-se do
corpo dos adultos e, nas escolas, as crianças se tornaram objeto de estratégias e
metodologias bastante especiais, inspiradas no rompimento com a velha pedagogia
medieval, que era baseada na imitação e apropriada a uma sociedade em que todos se
misturavam [...](Rodrigues, 1999:110)


       Os hábitos das classes dirigentes do século XIX foram impostos a todas as
crianças escolarizadas; entretanto as práticas corporais ensinadas às crianças foram
criadas por homens que não necessariamente as praticavam. Foi idealizado um novo
homem e as impressões dessas imagens foram gravadas nos corpos infantis. As práticas
corporais aprendidas na escola eram identificadas como hábitos das crianças bem-
educadas, antes de se tornarem habitus de toda uma elite no século XIX e, pouco a
pouco, do homem moderno das diversas condições sociais. Assim a escola dos séculos
XVIII e XIX tem um forte componente moral, como nos conta Áries (1981).
                     Uma nova noção moral deveria distinguir a criança, ao menos a
              criança escolar, e separa-la: a noção de criança bem-educada. Essa
              noção praticamente não existia no século XVI, e formou-se no século
XVII. Sabemos que se originou das visões reformadoras de uma elite de
              pensadores e moralistas que ocupavam funções eclesiásticas ou
              governamentais. A criança bem-educada seria preservada das rudezas e
              da imoralidade, que se tornariam traços específicos das camadas
              populares e dos moleques. Na França essa criança bem-educada seria o
              pequeno-burguês. Na Inglaterra, ela se tornaria o gentleman, tipo social
              desconhecido antes do século XIX, e que seria criado por uma
              aristocracia ameaçada graças às public schools, como uma defesa
              contra o avanço democrático. (p.185).

       As imagens-memórias que possibilitaram a produção dessa educação que molda
o corpo foram sendo geradas a partir do século XVI. As políticas governamentais do
século vão assumindo a imagem do corpo como uma máquina que pode e deve fazer
aquilo que é identificado como necessário ao mundo moderno.


       Assim, produzindo o enredo dos saberes sobre o corpo, vimos seu interior
ganhar relevância com a descoberta do microscópio. A circulação sanguínea foi
identificada por William Harvey (1578-1657);o sistema linfático e os glóbulos
vermelhos forma vistos por Jean Pecquet (1622-1674). O corpo humano se tornou cada
vez mais visível, por dentro e por fora, e esta visibilidade o apresentou como um marco
de distinção sócio-cultural. Novas formas de ser vão aparecendo na sociedade européia
e toda uma tecnologia é criada para ajudar a nova elite a assumir mais rapidamente
comportamentos e posturas compatíveis com o mundo moderno.


       As imagens maquínicas de corpo foram sendo engendradas nos diferentes
espaços do conhecimento. Vigarello (1995) nos mostra dos instrumentos corretores que
proliferaram na medicina e que assumiram um caráter pedagógico; eram os espartilhos e
os aparelhos de sustentação, que no final do século XVII, passam a ter a função de
preservar e de modelar o corpo, pretendendo eliminar a deformação e firmar a postura,
fixando-a.
                      Essas ações convenientes que resultam da fixação paciente e
              calculadora de uma aparelhagem, essas silhuetas cujo cingimento
              meticuloso coloca em ação a educação, revelam até o nível do
              simbólico, uma relação tradicional com a infância. Pois a aparelhagem
              artificial é como o prolongamento de uma mão sonhando com a
              soberania suprema sobre o crescimento dos corpos. (Vigarello, 1995:26)


       Os aparelhos tornaram-se uma imposição, quase um elemento obrigatório, no
final do século XVII e no século seguinte, para a correção dos jovens nobres e
burgueses. São assumidos como uma precaução contra as deformidades, que poderiam
ameaçar as crianças, ficando explicitas as marcas e as pressões de uma época que
desejava imprimir no corpo jovem as marcas da diferença com a cultura medieval.
Logo, essas tecnologias passam a ser aplicadas nos trabalhadores e em seus filhos, que
deverão também adotar uma forma de ser que os inclua no mundo “civilizado”, como
corpos capazes de superar os limites de seus “maus hábitos” e da “ natureza”, para
tornarem-se adaptados às exigências do mundo do trabalho e à civilidade moderna. A
formação do corpo se torna técnica de modelagem {até mesmo na dimensão tangível de
um gesto, onde mão e aparelho chegam às vezes a se confundir }rever imagens de
modeladores32
IntroduçãO3
____________

32 modelador


           Nós séculos XVIII e XIX, á imagem corpo máquina se agrega o modelo corporal
baseado na termodinâmica, pois este é agora visto como um produtor de energia.
Assimilado à combustão do carvão, um novo horizonte se apresenta como representação
dos dinamismos orgânicos e da saúde. O processo respiratório representará um
importante papel, pois se concluiu que a atividade física se realiza a partir da queima de
material fornecido pelo sangue. No início dos Oitocentos, nos relata Vigarello (1996),
as máquinas a vapor servem como referência analógica para idéia de corpo. É por seu
modelo, mais ou menos consciente, que passa a codificação das eficácias corporais: a
saúde supõe uma boa energia de combustão (p.191). Os trabalhos produzidos por
Antonio Laurent Lavoisier33 (1743 –1794) foram importantes para essa nova
perspectiva, pois suas conclusões de que na respiração elimina-se oxigênio do ar e
exala-se gás carbônico possibilitou uma nova interpretação na relação trabalho corporal
e respiração.




                                                                    33


                         Antonio Laurent Lavoisier (1743-1794). Os seus estudos
                  guiaram-se pela hipótese de que todos os fenômenos da Química se
                  devem a deslocamentos da matéria. No Universo, tomado em seu
                  conjunto, a matéria é sempre a mesma, pode mudar de forma, mas não
                  pode aumentar ou diminuir. Dessa teoria surgiu seu principio bastante
                  conhecido de que nada se perde e nada se cria. O instrumento usado por
                  Lavoisier para demonstrar essa hipótese foi a balança: em qualquer
                  reação química realizada em vaso fechado a aparência dos componentes
                  pode mudar, mas o seu peso deve permanecer o mesmo.(Petra. 1999:112)

           Nesta rede de intrigas entre imagens-memórias de corpo e de saber, entram ainda
Robert Koch (1843 – 1910), que descobriu, na Alemanha, o bacilo causador da
tuberculose e Louis Pasteur (1822-1895), na França, cuja afirmação – todo organismo
vivo provém de outro organismo vivo -, para a além de ir contra as memórias-imagens
da Igreja, vai alterar radicalmente as imagens preponderantes entre alguns cientistas,
que acreditavam na geração espontânea.
       Pasteur, pesquisando sobre a raiva e a doença que atacava a uva e o fumo,
descobriu os micróbios; eles estavam por toda a parte e invadiam o corpo causando
doenças. Os corpos são capturados pela rede do perigo invisível, porém ele demonstrou
que aqueles que podiam causar doenças poderiam também ser mobilizados para evita-
las. Suas pesquisas o levaram a produzir um processo de imunização, tanto para animais
como para humanos, e pela primeira vez o corpo vivo será conscientemente invadido
por outro corpo vivo.


       Também os trabalhos do Inglês Charles Robert Darwin34a (1809 –1882) vão se
enredar na produção dos saberes que contribuirão para aprofundar em nossa memória a
imagem de um corpo máquina. Por um fio, o princípio da seleção natural, pilar
fundamental para o desenvolvimento da Biologia, contribuiu para a produção de uma
discursividade que dominou, até bem pouco tempo, as ciências humanas. O livro de
Darwin, publicado em 1859, foi uma das obras mais importantes até hoje escritas. De
fato, “sobre a Origem das Espécies por Meio de Seleção Natural”, onde trata-se da
apropriação do mecanismo de interação biológica que as diversas espécies animais e
vegetais haviam evoluído no decurso de milhões de anos a partir de formas ancestrais
relativamente simples, como também desenvolvia a hipótese explicativa da maneira
como tal processo ocorrera. Em si, a idéia da evolução orgânica ou da transmutação
das espécies não era interamente nova;ligavam-se a ela nomes tais como o do
naturalista francês Lamarck34b e o de Eramus Darwin, avô de Charles Darwin. No
entanto, o conceito de seleção natural, que explicava aquele processo, era original e de
extrema importância, pois vinha dar fundamento à teoria – a sua estrutura lógica –
tornando-a muito mais aceitável pra quem se interessava por Biologia e por História
natural21. Assim, o pensamento lamarkista resume-se em duas leis: A lei do uso e
desuso( segundo esta lei,quanto mais usadas as partes do corpo, mais elas se
desenvolvem; em contrapartida, as partes não usadas vão se enfraquecendo, atrofiando-
se , chegando a desaparecer); a lei da herança dos caracteres adquiridos( Essa lei
postula que as alterações provocadas num órgão pelo uso e desuso são transmitidas aos
descendentes).


_____________________
21 Ecologia Humana. Bernard Campbell, edições 70.3
34 a Charles Robert Darwin 34b Lamarck.




                                        34 a                                    34b




Contudo, por outro lado, ele provou que homens e macacos tinham um antepassado
comum, que éramos apenas mais um elo na evolução das espécies, e não seres especiais
criados por Deus, para dominar a natureza. Desorganizando o território no qual a
racionalidade vinha colocando o homem, ele trouxe mais um elemento de possibilidade
e de insegurança para nossa cultura: a hereditariedade. Esta foi reduzida aos sinais de
transmissão de doenças e defeitos, constituindo-se em mais um dos encaixes de corpo
máquina. Esta máquina tornou-se agora uma máquina de informar, de transmitir ao
informações, algumas desejadas e outras não.


          Para casar um filho ou uma filha, passou a ser preciso saber sobre o passado e os
antepassados do pretendente. As informações dos médicos, dos padres e de pessoas
conhecidas sobre o outro se tornaram valiosas. As famílias da elite construíram um jogo
de espionagem e ocultação, pois todos queriam ocultar ou descobrir doenças físicas ou
psíquicas que pudessem comprometer a geração de filhos saudáveis.


          Nesta guerra onde o corpo era atacado pelo ar, pela terra e pela água, só o
comportamento de “civilidade” seria capaz de trazer-lhe paz. A idéia de civilidade
passava tanto pela manutenção da limpeza dos espaços privados e dos públicos, como
pela civilidade moral. Era indispensável a higiene pessoal, incluindo-se aí o controle
dos gestos.


        A população, que se encantava com várias demonstrações públicas do que estava
sendo produzido como saber tecnológico e científico nas academias de ciências, em
geral não acreditava no que não podia ver. Mas a visibilidade das forças da “ordem e da
limpeza” assusta. Tais forças passaram a mexer na vida privada de todos, especialmente
da camada pobre da população que não tinha água encanada, latrinas individuais e cujas
relações sexuais aconteciam ainda bem ao gosto dos tempos medievais. Ainda no final
do século XVIII, o médico se aproximou do político, quando passou a desempenhar um
papel na disposição das cidades e de diversos locais públicos.


        No século XIX a cultura da elite, especialmente a francesa, se tornou
hegemônica e o ideal de vida burguês, um padrão a ser adotado por todos. E também o
século da invenção do telégrafo, da ferrovia, dos trens, da energia a vapor de água e
carvão, da eletricidade, do telefone, do raio X, da dinamite, da anestesia, da fotografia,
do cinema, da psicanálise, da Coca Cola, do Leite Condensado da Moça, da Farinha
Láctea, das lutas sociais, etc...


        As leis da termodinâmica, que já haviam demonstrado como a conversão do
calor resultava em possibilidades efetivas de trabalho, produzem, na elite e em suas
crianças, o culto à prática da ginástica e da respiração. Os banhos frios voltaram a
ganhar destaque, desde que relacionados com a movimentação do corpo. Nasceu, para a
elite parisiense, a natação no Rio Sena, que segundo Vigarello(1996), não é mais do que
um lugar especial de tonificação (p.141). O corpo amarrado e apertado será considerado
um erro pedagógico e médico, muito embora ele continue em voga até o início do
século XX, mas agora acompanhado das práticas de educação física.


        O sujeito pode exercer sua força sobre os engenhos, pois, na lógica que estrutura
o mundo burguês do trabalho, cada indivíduo passa a ter o comando dos esforços para
sua correção na vida. A subjetividade assume um lugar privilegiado nas pesquisas
científicas e mesmo na vida cotidiana.
                      Endurecer o corpo e suas fibras por meio da ginástica e também
                dos banhos frios de mar, que não tardam a entrar na moda, exprime a
vontade de produzir um organismo resistente e saudável, capaz de
              combater a indisciplina, no sentido lato deste termo. Apelos morais e
              científicos misturam-se. A moleza das carnes que o espartilho esconde se
              transforma numa indecência, antes desconhecida, acusando uma
              personalidade fraca e desprovida de vontade própria(Sant’Anna,
              1996:251).

       O homem e a mulher modernos poderão/deverão modelar seus corpos a partir
de suas forças internas; e ascendência de cada indivíduo deixa de ser uma garantia para
desvendar a sua honra e predizer sobre o seu futuro. Será na aparência física que os
olhares inquisidores, acerca dos segredos da subjetividade, serão depositados.


       Na era do supercrescimento das cidades, em que o fenômeno do anonimato se
massifica, proliferam pequenos furtos, doenças e meios para que o indivíduo se distinga
na multidão, acentuando o sentimento de identidade individual, elemento contraditório
que nasce com a própria sociedade que está sendo bordada.


       Se, no século XVIII, constitui-se uma arte da produção de quadros vivos, no
século XIX, ver-se o outro se torna uma das maneiras não apenas de se compreender na
ordem do mundo, mas também de educar o olhar classificatório. As marcas nos corpos
se tornam identificadores do lugar social do indivíduo, do lugar de cada cultura na
evolução. Nesta época a Antropologia se constituirá como o lugar do estudo da
diferença, tanto étnica como cultural.Sua fundamentação se baseia nos processos de
observação, nomeação e exibição das diferenças. Dias (1996), a partir de um estudo na
França, afirma que esta área do conhecimento, ao buscar legitimidade cientifica, tomou
como modelo de referência a Medicina, agrupando todos os conhecimentos em torno
dos fatos mais certos, os fatos anatômicos. Não havia uma crença positivista de uma
objetividade quantificada, mas um esforço no sentido de evitar a intervenção subjetiva
em um domínio onde o corpo era ao mesmo tempo modo e objeto de conhecimento.


       Na segunda metade do século XIX, a antropologia, tal como a arte, estavam
confrontadas com questões semelhantes relativas ao problema da construção de
representações realistas (Dias, 1996:35), sendo para isso necessário apresentar os
objetos de uma maneira considerada “agradável aos olhos” e perceptível num “golpe de
vista”. Essas idéias guiavam o modo de representar a realidade e um estudo das
coleções e das exposições de ossos humanos, realizadas na segunda metade do século
XIX, fez com que fossem identificados alguns dos pressupostos de uma determinada
concepção da natureza humana. A aparente diversidade das coleções exibidas apenas
servia para delinear melhor as fronteiras entre o homem e o animal e entre o homem
ocidental e o Outro; servindo também para definir melhor o normal e o seu duplo, o
patológico.


No Muséum d’Histoire Naturelle, o modo de apresentação começava com “as raças
humanas fósseis”, depois os materiais relativos às variedades fisiológicas e patológicas
do esqueleto e do corpo, e, finalmente as raças humanas atuais (classificadas segundo
uma ordem geográfica).
                       Este modo de apresentação procurava evidenciar a unidade da
                espécie humana no tempo – dos homens fósseis aos homens atuais – e no
                espaço(as diversas raças eram apenas variedades no seio de uma
                mesma espécie). Percorrendo as diferentes salas e indo de uma vitrina
                outra, o visitante era convidado a seguir um percurso cronológico e
                geográfico, “começávamos pelos negros de cabelos lisos;acabávamos
                nos brancos”. (Verneau, 1898:334), percurso que fornecia um acesso
                visual e conceptual à longa história da vida humana na Terra. (Dias,
                1996:39)

       O estudo da diferença racial e a constituição de coleções e de espaços reservados
ao exercício do olhar datam também no século XIX, quando a noção de diferença se
constitui, pois até será sobre o Outro – raça inferiores, mulheres, idiotas, anormais – que
se debruçarão os estudos antropológicos até bem recentemente, procurando os
caracteres diferenciais do crânio e da face dos grupos humanos objetivando colocar qual
no seu lugar da série dos seres vivos.


       Para a nobreza européia dos séculos anteriores, ser diferente ainda não
significava, necessariamente, ser menos. Podia significar ser um inimigo, mas as
diferenças não eram identificadas como algo que faz parte do mau.


       Nietzsche(2001) nos ajuda a rememorar que “bom e ruim”, “bom e mau” têm
origens distintas. O primeiro par nasce da valorização da forma de existência da nobreza
e o segundo, da valorização da existência sacerdotal. Assim, ele analisa a primeira
afirmando que
                       O juízo de “bom” não provém daqueles aos quais se fez o
                “bem”! Foram os “bons” mesmo, isto é, os nobres, poderosos,
                superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si
e a seus atos como “bons”, ou seja, de primeira ordem, em oposição a
               tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. (p.19)

       O modo de valoração nobre-sacerdotal identifica a guerra como um mau
negócio, pois são fisicamente impotentes. Essa impotência lhes gerou um ódio sem
igual e, partindo do que havia sido gestado dentro da nobreza, sobre si mesma, os
sacerdotes produzem uma inversão nos valores aristocráticos e “bom, nobre, poderoso,
belo, feliz e caro aos deuses” se altera.
                      Os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres,
               impotentes, baixos são os bons, os sofredores, necessitados, feios,
               doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para
               eles há bem-aventurança – mas vocês nobres e poderosos, vocês serão
               por toda a eternidade os maus,os cruéis, os lascivos, os insaciáveis , os
               ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e
               danados!...(p.26)

       Na sua impotência, o ódio tomou proporções monstruosas e sinistras. Assim, nos
fala Nietzsche(2001),
                      na história universal, os grandes odiadores sempre foram
               sacerdotes, também os mais ricos de espírito – comparado ao espírito
               de vingança sacerdotal, todo o espírito restante empalidece. A história
               humana seria uma tolice, sem o espírito que os impotentes lhe
               trouxeram. (p.25)


       A valorização sacerdotal cria, sobre todos aqueles que se diferem de sua
representação do mau. Essa imagem-memória dos odiadores, impressa na memória de
corpo daqueles que ascendem ao poder político e cultural, gera toda uma produção
cultural onde o mal estará representado naquele que não se parece com o novo padrão
em vigor. Alguns dos cientistas, como homens de sua época, não se questionam das
origens destas e de outras noções morais, como o fez Nietzsche, no final do século XIX.


       Konder(1992) nos mostra, por exemplo, que era comum entre os homens
europeus daquela época encarar como “naturalmente” universal tudo o que ali era
produzido. Hegel, que foi professor de Marx, por exemplo, referia-se depreciativamente
aos povos da África, da América e de vastas regiões da Ásia como “povos sem
história”, pois, o europeu acreditava que sua forma de pensar era superior a de todos os
outros povos. E o próprio Marx, na carta escrita ao jovem cubano Paul Lafargue, em
1866, explicita o quanto se identificava com a cultura européia de sua época. Assim,
Konder (1992) nos relata que ele
Mostrou-se preocupado com a situação econômica do então
              candidato a genro, e o admoestou: “Não queira fazer poesia em prejuízo
              da minha filha!”. Censurou-lhe com acrimônia o fato de toca-la, de
              fazer-lhe em público gestos de carinho: “ A meu ver, o verdadeiro amor
              se traduz na discrição, na modéstia e mesmo na timidez daquele que ama
              adiante de seu ídolo, e não, absolutamente, nas expressões soltas da
              paixão e nas demonstrações de uma familiaridade precoce”. Para
              concluir, num tom ameaçador: “Se você invocar o seu temperamento
              criolo, meu dever será o de impor a minha razão entre o seu
              temperamento e a minha filha. Se você, quando está na companhia dela,
              não souber amá-la de uma maneira que se compatibilize com o
              meridiano de Londres, precisará se resignar a amá-la de longe. A bom
              entendedor, meia palavra basta.(p.29)


       Buscando o mau nas marcas e expressões corporais nasceu a Antropologia
Criminal. Conta-nos Collomb (1995) que está é produzida a partir de adaptações dos
métodos de trabalhos da Sociétée d’Anthropologie de Paris, onde existia um campo de
estudo gerado pelas preocupações com os diferentes aspectos da constituição física, dos
fatores endógenos (raça, genética, hereditariedade, etc) e da atuação do delinqüente no
ambiente físico e social. A fisiognomonia colocou o indivíduo com sendo indissociável
da expressão singular do seu rosto, pois a aparência poderia revelar a essência de cada
um. Sua associação à Antropologia Criminal produziu um conhecimento, pela
aparência, sobre aquilo que estava invisível no ser: suas emoções, seus desejos, suas
“taras”. Pretendia-se um aprofundamento na leitura das paixões humanas, um cálculo
prévio, através da leitura do ser humano por meio do desenho exterior do seu corpo.


       Uma rígida hierarquia dos órgãos e das partes do corpo humano participava
dessa decifração das aparências. Esta se apoiava no imaginário científico que havia feito
do cérebro a sede da existência. As proporções do cérebro e as expressões do rosto
transformaram-se em chaves para desvendar as razões que explicavam os talentos e os
defeitos pessoais. A contemplação da subjetividade, que se acreditava estar estampada
na aparência, junto a uma vontade de aparentar pertencer à elite, coincide com a
promoção de um olhar que se quer documental e, sobretudo, capaz de participar dessa
nova sensibilidade do olhar, que concede ao rosto um lugar de destaque. Alías, lugar
que, até a pouco, não se tinha como um pouso para os olhos, que preferiam os seios, as
nádegas ou os pés. Santa’Anna(1996) relata que
Com Louis-Jean Marie Daubenton (1716-1800), um dos
              primeiros a fazer do crânio um objeto de estudo privilegiado, o que se
              observa é a legitimação da tentativa de relacionar o físico à moral, uma
              ciência das correspondências entre a subjetividade e a parte superior do
              corpo, entre o cérebro e as emoções.(p.252)


       A fotografia e o espelho se vulgarizaram contribuindo para a construção da
corporeidade moderna. Sant’Anna (1996) nos lembra que depois de conquistar as terras
distantes, a natureza e outras culturas, o europeu foi impelido a conquistar o próprio
corpo, e, dentro dele, um novo universo que não cess[ou] de ser descoberto (p.250).


2.3.3- Violação nas imagens-memórias de corpo máquina


       A noção de tempo absoluto e a angústia de chegar logo às conquistas do futuro
fizeram dos homens e das mulheres pequeno-burgueses do século XIX indivíduos
solitários e angustiados. Para a maioria da população, no entanto, a luta pela
sobrevivência era por demais penosa. A miséria de muitos contrastava com a crescente
capacidade acumulativa de outros. O saber estava em identificar as possibilidades de
melhoria individual de sua vida privada e a de sua família, agora, nuclear. O saber
estava do lado de fora do corpo, corpo este que devia ser domado para cumprir as
exigências político-culturais de uma época.


       As formas científicas de leitura do mundo passam a dominar e a que vai
hegemonizar a racionalidade identificará, na neutralidade do observador, a
possibilidade de descoberta da verdade. O aleatório, a subjetividade e as impurezas são
rejeitados na produção dos saberes sobre o mundo, o qual se consolida sob a
hegemonia da razão capitalística que, por sua vez, gera imagens-memórias dominantes
de ciência que se agregam em nossa corporeidade como fiapos de uma política de
manutenção do status quo.


       A educação assumiu um papel preponderante que, junto de outros mecanismos
culturais, não só gravaram, na corporeidade da população, imagens-memórias da nova
classe dominante, como também buscaram manter vivas as várias formas de
dominação, sem a necessária presença do controle permanente. Os saberes e os poderes
das elites político-culturais foram assumidos como os válidos, os verdadeiros para a
maioria da população.


       Homens e mulheres participaram ativamente desse processo de produção de
políticas que urdiram a cultura moderna e a arte de modelar corpos dóceis. Contudo,
será dentro da própria racionalidade cientifica que aparecerão os questionadores desta
cultura que se fez poder.


       Ainda no século XVIII eram apontadas algumas das principais contradições
presentes da nova forma de organização político-cultural, pois a miséria a que estava
sujeito o proletariado não condizia com o aumento da capacidade de produção da
sociedade. O próprio liberalismo político encontrava antagonismos com as práticas do
liberalismo econômico. Muitos denunciavam o trabalho infantil e das mulheres nas
fábricas; outros defendiam a melhoria das instalações sanitárias nas fábricas e nos
bairros proletários vislumbrando uma melhoria para a saúde dos trabalhadores e de seus
filhos. Alguns, por compreenderem esses como pessoas humanas, outros, por verem, na
melhoria da sua qualidade de vida, uma possibilidade de melhoria na produção e
outros, ainda, por identificarem, naqueles sujeitos trabalhadores, homens da nação.


       Contudo, as mudanças mais concretas se fizeram quando, em diferentes espaços
do mundo, os operários iniciam organizações para a defesa de seus direitos, rebelando-
se, mas também produzindo alternativas. As revoltas operárias, em diferentes atividades
industrias, nos vários espaços europeus, colocam em cheque as imagens-memórias
dominantes. Estas são durante questionadas, se adensam as criticas e os movimentos
contrários à exploração do trabalho de mulheres e de crianças. A identificação das
relações de poder começa a gerar novas produções, especialmente no campo das
ciências sociais. Homens com formação cientifica, como Proudhon, Fourtier, Bakhtin,
Robin, Engels e Marx, ajudaram na identificação dos mecanismo dominantes nas
políticas que apropriavam os trabalhadores de si mesmos e de seus saberes, e na
produção de propostas para a superação da dominação. Proudhon via na educação
popular capitalista uma educação para a servidão, que procurava manter as massas na
ignorância, ensinando-as a obedecer e a servir, para manter a supremacia das classes
dominantes (p.4 9). Na interpretação de Nogueira (1990), Marx e Engels viam a
educação como arma importante para que o trabalhador conseguisse não apenas ter
acesso ao saber, mas que possa ainda chegar a controlar o processo de
produção/reprodução (as condições de transmissão) dos conhecimentos científicos e
técnicos (p.91).


       Partindo das muitas críticas e práticas que estavam sendo implementadas, Marx
e Engels, vivendo no auge desta modernidade, organizaram e contribuíram para dar um
novo sentido às resistências proletárias. Invertendo a lógica hegeliana, na qual o mundo
se formaria no pensar, eles afirmaram que a sociedade é produzida pelos homens e que
estes se produzem dentro das condições históricas que encontram. Apontando uma
essência de classe nos conhecimentos, procuraram romper com a lógica de um saber que
se percebia como único, neutro e objetivo. Nas ciências sociais esta lógica estava
presente no positivismo de Auguste Comte, que propunha uma física-social,
fundamentando-se sobre duas premissas estreitamente ligadas.
   1) a sociedade pode ser epistemologicamente assimilada à natureza (o que nós
       chamaremos de “naturalismo positivista”); na vida social reina uma harmonia
       natural;
   2) A sociedade é regida por leis naturais, quer dizer, leis invariáveis,
       independentes da vontade e da ação humana.
   Por essas premissas se conclui que o método nas ciências sociais pode e deve ser o
   mesmo que o das ciências da natureza, com os mesmos métodos de pesquisa e
   sobretudo com o mesmo caráter de observação “neutra”, objetiva e desligada dos
   fenômenos. (Lowy, 1985:10).

       Neste projeto de ciência social, estava explicita uma visão natural da dominação
dos mais capazes sobre os menos capazes, não havendo o que fazer para transformar a
ordem das coisas. A racionalidade cotidiana estava permeada por um desejo de
argumentação que convencesse a todos do equilíbrio social que a burguesia havia
conquistado, colocando-se contra os sonhos revolucionários utópicos e negativos, o
positivismo enaltece a aceitação passiva do status quo social. (idem, ibidem).
       Muitos dos interpretes de Marx e Engels, no entanto, vão assumir a essência de
classe como o único critério para a produção do saber-verdade e desarticular da sua
produção a pluralidade; a práxis se perde como produção de saber e se esvazia de
conteúdo.


       Marx e Engels localizaram na classe operaria a possibilidade de uma nova
revolução social e identificaram na consciência de classe para si o caminho para romper
com a dominação da burguesia. Marx e Engels foram críticos contundentes de alguns
elementos daquela cultura, mas se esqueceram, ou não viram, de que eles próprios eram
sujeitos corpóreos de seu tempo. Marx foi um crítico à ciência das duas últimas décadas
do século XIX; apontava sua tendência pragmática e uma confiabilidade exacerbada em
suas   verdades,     que    mistificavam     e   produziam      saberes    “imparciais”,
“descomprometidos” e postos acima da história.


       Com certeza de ter chegado ao seu destino de sucesso, as forças político-
cientificas da burguesia, mais destacadamente o liberalismo econômico e o positivismo
nas ciências sociais, trabalharam juntas no sentido de perpetuar a imagem-memória de
que o trabalho incansável é a forma para se atingir mais rapidamente o futuro. A
produção se apodera do presente-futuro, e mesmo as imagens-memórias produzidas por
alguns questionadores da sociedade burguesa não se desvencilharam de uma noção
necessária do controle do corpo nela mente para que se chegue ao futuro prometido. A
modernidade se concretizou na busca repetida de um tempo que viria e esse tempo seria
de fartura, em face da capacidade produtiva de hoje-amanhã.


       Em seus escritos partilhados com Engels, aparecem traços da sua relação com o
corpo, no qual apontam, como primeiro pressuposto para a existência humana, e,
portanto, para a história, a necessária condição de o homem estar vivo. Para viver,
disseram eles, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas
coisas mais (1989:39). Talvez eles devessem nos ter dito quais eram estas algumas
coisas mais, porém não o fizeram, não obstante estarem vivendo o tempo da
discursividade e do olhar sobre o corpo.


       Logo a seguir explicitam que satisfeita esta necessidade, a ação de satisfaze-la e
o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades – e esta
produção de novas necessidade é o primeiro ato histórico (p.40). Apresentam-nos,ainda,
o que chamam de terceira condição que intervem no desenvolvimento histórico: o fato
de os homens se renovarem diariamente, renovando, assim, sua própria vida, quando
começam a criar outros homens, a procriar (p.41), gerando com isso uma dupla forma
de produção da vida: “De um lado, como relação natural, de outro como relação social-
social no sentido de que se entende por isso a cooperação de vários indivíduos,
quaisquer que sejam as condições, o modo e a finalidade (p.42). Sendo, assim, há uma
conexão materialista dos homens entre si, condicionada pelas necessidades e pelo modo
de produção (idem,ibidem) tão antiga quanto o próprio homem. Continuam a nos dizer
que a consciência é como um outro elemento que também constrói a história e que esta
consciência é “contaminada” pela matéria, apresentando-se sob a forma de linguagem.
Eles concluem que a linguagem é tão antiga quanto a
                       consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que
               existe para os outros homens, portanto, existe também para mim mesmo;
               e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade
               de intercâmbio com outros homens.[...] A consciência, portanto, é desde
               o início um produto social, e continuará sendo enquanto existirem
               homens. (p.43).

       A linguagem não é apenas a falada e a escrita, a linguagem é também a dos
gestos, das expressões que interagem com os outros sujeitos concretos que povoam o
mundo da existência. O “penso, logo existo”, de Descartes, é invertido na formação
proposta por Marx e Engels. A existência material do homem é que vai formando,
constituindo a existência de uma consciência que não se sobrepõe a nada, que não é
“pura”, mas “contaminada” pela materialidade da existência social, pela busca por
satisfazer suas necessidades, que geram outras. A consciência é também constitutiva do
ato de conhecer e se produz na interação com outros homens, pois o homem se constitui
homem na interação social, embora ele seja também parte da natureza.


       O panorama no qual Marx e Engels viveram, as cidades européias, poderia ser
descrito pelo ar repleto de gases produzidos pelas industrias, de poeira produzida pelas
obras e pelas rodas dos carros, que faziam dos corpos vultos para o passante que agora
conta as horas no relógio. Já não tendo controle sobre seu tempo, pois seria o apito da
fábrica que marcaria o início da sua jornada de trabalho e a possibilidade de manter-se
alimentado e com moradia, corporificou-se um novo tipo de sujeito e a conscientização
de sua existência transformou a Europa em um caldeirão fervente, no pesadelo dos
políticos e dos administradores burgueses. Com a burguesia industrial nasceram o
proletariado industrial, a identificação dos mecanismos de exploração de sua força de
trabalho e as formas de resistências e de controle.


       Lowy(1985)nos aponta como principais críticas de Marx à desumanidade do
capitalismo: a alienação, onde o processo de produção domina os homens e não os
homens o processo de produção(p.68); a degradação física dos trabalhadores, a partir
do relato de médicos e de inspetores de fábricas que revelam a subalimentação, as
doenças, as condições de vida e de trabalho degradantes, a morte por excesso de
trabalho, a miséria no sentido absoluto dos trabalhadores em geral, e das mulheres e
crianças em particular(p.69); e a degradação intelectual e moral dos trabalhadores,
pois ele lhes rouba o tempo necessário à educação, a desenvolvimento intelectual, às
relações sociais (p.69).


       Marx ensinou-nos a ler o mundo segundo uma hermenêutica de suspeição e, ao
contrário de outros fundadores das ciências humanas, atribui à classe operária, não só o
interesse, mas também a capacidade de transformar por inteiro a sociedade capitalista
através da ação revolucionária. Para ele a sociedade nasceu pela estruturação de um
conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho, divisão social do trabalho, divisão
social das riquezas, divisão social do poder econômico e político, que concentrava na
mão de alguns poucos as riquezas, o saber, os bens, as armas e as terras, enquanto
outros não possuíam nada disso. Essas idéias universalizaram o proletariado. Se, por um
fio, rompeu-se com a lógica de uma ciência que privilegiava a mente ao corpo, o pensar
ao fazer e que se propunha neutra, por outro, a multiplicidade presente na classe
proletária parece ter recebido a atenção necessária. Fragmentos que identificam e
singularizam não foram compreendidos como relevantes.


       As produções que surgiram a partir do pensamento de Marx influenciaram o
mundo. É inegável a importante presença de sua mãos na tapeçaria das possibilidades de
interpretação e critica do mundo burguês. Seu trabalho possibilitou-nos leituras sobre
como o pensamento de uma classe foi tramado formas de produzir conhecimentos, de
ser, de sentir, de agir e de olhar o corpo. Ele nos ajudou também a identificar e a
produzir mecanismos de resistência com seu potencial para a rebeldia.


       Marx e Engels viveram e compartilharam saberes e, assim como outros, foram
capazes de identificar algumas imagens-memórias e de produzir algumas leituras
importantíssimas de uma época. Partindo de outros referenciais, mas também
incomodado pelo que acontecia em seu tempo, veremos aparecer, no cenário cientifico,
figura de Freud.
35




       Elias(1994a) nos lembra que no processo civilizador a psique do homem foi se
alterando e que a contenção dos gestos conduziu esta alteração. Uma outra cultura se fez
neste processo e desaguou na Modernidade do século XIX carregando um rio de
memórias de outras épocas e de refreamento das pulsões. O homem moderno foi
produzido na cultura e a produziu por aceitar e incorporar as transformações que
estavam sendo propostas por alguns grupos.As produções para o controle de si
tramaram uma discursividade que atuou sobre os processos de individualização
engedraram nos sujeitos do século XIX, para além de novas práticas corporais, novos
sofrimentos: foi produzido um mal-estar na civilização.

       A complexidade da nova sociedade e, como afirma Corbin (1991),
                     O esforço de cada um para construir sua própria personalidade e
              a influência do olhar do outro estimulam o descontentamento, até a
              difamação de si; e deságuam no sentimento de insuficiência.[...] O
              caráter competitivo da existência conduz ao esgotamento, aumenta a
              preocupação profissional. Para o indivíduo formado desde a infância na
              intimidade com os testes, cresce o temor do fracasso, a necessidade de
              uma perpétua adaptação, a angústia do abandono podem gerar certo
              medo de viver.(p.563)


       Pesa sobre os espíritos dos jovens da elite um certo sentimento de culpa em
relação a si mesmos, e o triunfo da nova ciência da moralidade tende a provocar
mudanças no olhar com que cada um fita se próprio corpo e o corpo do outro. A
interdição e a curiosidade entram na ordem do dia. Os mecanismos de controle sobre o
corpo das jovens e das senhoras ajudaram a produzir as histerias e as alcoólatras em
todas as classes sociais. Mas não somente entre as mulheres o alcoolismo cresceu na
Europa; homens e mulheres de diferentes classes culturais e de variadas idades
passaram a consumir bebida alcoólicas em grande quantidade, e o fumo passou a
integrar o cotidiano de homens e mulheres. A solidão tornou-se uma marca no corpo
moderno, um corpo que a racionalidade cartesiana havia separado da mente e dos
afetos. O número de suicídios cresceu muito a partir do meio do século XIX, podendo
ser interpretado tanto como um reflexo do sofrimento individual de vergonha por atos
que marchavam a dignidade individual ou de sua família, como também devido à
angustia produzida pela perda dos referenciais. Cresceu o número de identificação de
pessoas com doenças psíquicas, de perversões e a ligação destas com o sexo. Foucault
91988) nos conta que




__________________
35 Sigmund Schlomo Freud nascido a 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Moravia, filho de pais judeus, aos 4 anos foi para Viena,
onde recebeu toda sua educação e viveu quase toda a sua vida. Na escola secundária o Gymnasiu, foi o 1º aluno da turma durante
vários anos, o que o colocou numa posição privilegiada. Freud morreu a 23 de setembro de 1939, aos 83 anos em Londres.



                            O acontecimento mais discreto na conduta sexual – acidente ou
                     desvio, déficit ou excesso – é, supostamente, capaz de provocar as
                     conseqüências mais variadas, ao longo de toda a existência; não há
                     doença ou distúrbio para os quais o século XIX não tenha imaginado
                     pelo menos uma parte de etiologia sexual. Dos maus hábitos das
                     crianças às tísicas dos adultos, às aploplexias dos velhos, às doenças
                     nervosas e ás degenerescências da raça, a medicina de então teceu toda
                     uma rede de causalidades sexual. (p.64-5)

          Proliferaram estudos e formas de catalogar os diferentes “desvios de conduta”, e
os médicos alienistas – bem parecidos com o personagem de Machado de Assis -, a
pretexto de dizerem a verdade, atribuíam às menores oscilações de sexualidade uma
dinastia imaginária de males fadados                        a repercutirem sobre as gerações e sobre a
sociedade inteira. Pretendeu-se que se acreditasse até mesmo nos perigos de hábitos
furtivos dos tímidos e nas pequenas e mais solitárias manias. A partir das expressões
corporais que passaram a ser anotadas como sintomas, seguia-se uma análise das razões
que levavam o sujeito a agir daquela maneira. Esta nova forma de observar o corpo fez
surgir as figuras do “invertido”, dos fetichistas de todos os matizes, do “exibicionista” e
do “zoófilo” (Corbin, 1991) que foram catalogados como possuidores de patologias da
“loucura moral” e da “neurose genital”. A busca de sinais e informações no corpo se
intensificou focalizando nos prazeres insólitos nada menos do que a morte: a dos
indivíduos, a das gerações, a da espécie ( Foulcault, 1988:54). Fazia-se necessário tirar
o diabo do corpo, para purifica-lo, fosse com água e sabão ou nas seções de psicanálise,
onde esse pudesse ser auscultado, medido, esticado e analisado por um outro indivíduo
que fazia anotações detalhadas de suas características. Era preciso inquirir sobre tudo,
guardar as informações para checa-las. Era indispensável obter todas as informações
que o sujeito examinado tinha a dar.

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados (16)

PDF
Exame mod 4 2 taar - correção
teresagoncalves
 
PPTX
Cultura leiga e profana das cortes régias e senhoriais
Escola Luis de Freitas Branco
 
PPTX
Cultura popular
Carla Teixeira
 
DOC
Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (1/3)
GRAZIA TANTA
 
PDF
Valores, vivências e quotidiano
Vítor Santos
 
PPTX
A cultura da catedral contexto
cattonia
 
PPTX
Cidades imaginárias - hit da cidade por suas utopias
Gláucia de Castro Pimentel
 
PPT
A Crise do Séc. XIV
guestf792101
 
PDF
Historia das-teorias-antropologicas
Ana Francisco
 
PDF
História 2007
Esquadrão Do Conhecimento
 
PPT
Cultura medieval
PROFºWILTONREIS
 
PPTX
Educação Elementar
Mara Godinho
 
PDF
1 01 a cultura do ágora
Vítor Santos
 
PDF
A Religiosidade Medieval e o Ensino - História
jorgina8
 
PPT
Hca M3
Isidro Santos
 
Exame mod 4 2 taar - correção
teresagoncalves
 
Cultura leiga e profana das cortes régias e senhoriais
Escola Luis de Freitas Branco
 
Cultura popular
Carla Teixeira
 
Estado-nação, nacionalismo, instrumentos do capitalismo (1/3)
GRAZIA TANTA
 
Valores, vivências e quotidiano
Vítor Santos
 
A cultura da catedral contexto
cattonia
 
Cidades imaginárias - hit da cidade por suas utopias
Gláucia de Castro Pimentel
 
A Crise do Séc. XIV
guestf792101
 
Historia das-teorias-antropologicas
Ana Francisco
 
Cultura medieval
PROFºWILTONREIS
 
Educação Elementar
Mara Godinho
 
1 01 a cultura do ágora
Vítor Santos
 
A Religiosidade Medieval e o Ensino - História
jorgina8
 

Destaque (10)

PDF
EDUCAÇÃO MEDIEVAL
Kaires Braga
 
PPTX
Idade média hist e filos da educação 2
Alt Bandeira
 
PPTX
educação na Idade Media
Emer Buchmann
 
PPT
5 Idade Média
Robson Santos
 
PPT
Educação na idade_média
Ernesto Nhaguilunguana
 
PPT
A educacao na_idade_media
João Roberto Broggio
 
PPTX
Educação na idade média
Carolina Bueno Ramos
 
PPT
Cultura medieval
cattonia
 
PPTX
Educação na idade média
Elisangela Soares da Silva
 
PPT
História da educação resumo
zildamisseno
 
EDUCAÇÃO MEDIEVAL
Kaires Braga
 
Idade média hist e filos da educação 2
Alt Bandeira
 
educação na Idade Media
Emer Buchmann
 
5 Idade Média
Robson Santos
 
Educação na idade_média
Ernesto Nhaguilunguana
 
A educacao na_idade_media
João Roberto Broggio
 
Educação na idade média
Carolina Bueno Ramos
 
Cultura medieval
cattonia
 
Educação na idade média
Elisangela Soares da Silva
 
História da educação resumo
zildamisseno
 
Anúncio

Semelhante a IntroduçãO3 (20)

PDF
Feudalismo
Waleska Santos
 
PPTX
A terra e a agricultura na europa medieval
JovaniaZanotelli1
 
DOCX
Valores
manuela Sousa
 
PPT
Historiando sob diversos olhares
janahlira
 
PPT
Historiando sob diversos olhares
janahlira
 
PDF
Feudalismo
Waleska Santos
 
PPT
Historiando sob diversos olhares
janahlira
 
PPT
Historiando sob diversos olhares
janahlira
 
PPTX
Idade Média, FEUDALISMO, CRISE DO SECULO
GustavoFonsca
 
DOC
O (pré) conceito de idade média
Roseli Grubert
 
PPTX
Idade média
guiurey
 
PPTX
Idade Média
CEF Arapoanga
 
PPTX
Idade Média- Prof.Altair Aguilar.
Altair Moisés Aguilar
 
PPTX
Idade médiacompleto
Gustavo Cuin
 
PPTX
Idade médiacompleto
Gustavo Cuin
 
PPTX
Idade médiacompleto
Gustavo Cuin
 
PPTX
A guerra dos Cem Anos (1337-1453)
Laguat
 
DOC
[Resumo] Sociedade Feudal: Características Sociais, Econômicas, Políticas e ...
Bruno Camargo
 
PDF
Cap
Gustavo Cuin
 
Feudalismo
Waleska Santos
 
A terra e a agricultura na europa medieval
JovaniaZanotelli1
 
Valores
manuela Sousa
 
Historiando sob diversos olhares
janahlira
 
Historiando sob diversos olhares
janahlira
 
Feudalismo
Waleska Santos
 
Historiando sob diversos olhares
janahlira
 
Historiando sob diversos olhares
janahlira
 
Idade Média, FEUDALISMO, CRISE DO SECULO
GustavoFonsca
 
O (pré) conceito de idade média
Roseli Grubert
 
Idade média
guiurey
 
Idade Média
CEF Arapoanga
 
Idade Média- Prof.Altair Aguilar.
Altair Moisés Aguilar
 
Idade médiacompleto
Gustavo Cuin
 
Idade médiacompleto
Gustavo Cuin
 
Idade médiacompleto
Gustavo Cuin
 
A guerra dos Cem Anos (1337-1453)
Laguat
 
[Resumo] Sociedade Feudal: Características Sociais, Econômicas, Políticas e ...
Bruno Camargo
 
Anúncio

Mais de rogerio (7)

DOC
Anexos
rogerio
 
DOC
IntroduçãO7
rogerio
 
DOC
IntroduçãO1
rogerio
 
DOC
IntroduçãO6
rogerio
 
DOC
IntroduçãO5
rogerio
 
DOC
IntroduçãO4
rogerio
 
DOC
IntroduçãO2
rogerio
 
Anexos
rogerio
 
IntroduçãO7
rogerio
 
IntroduçãO1
rogerio
 
IntroduçãO6
rogerio
 
IntroduçãO5
rogerio
 
IntroduçãO4
rogerio
 
IntroduçãO2
rogerio
 

Último (8)

PDF
Zeebo: Uma brevíssima introdução. - David Glotz
BluePanther6
 
PDF
Apresentação de Manipulação de strings em Python .pdf
Gabriel Vitor
 
PDF
SENAC Modelagem de Dados - Aula02 curso de ADS.pdf
JhonataLamim1
 
PDF
SENAC Modelagem de Dados - Aula01 do curso de ADSpdf
JhonataLamim1
 
PDF
IA - Grupo J.pdf para trabalho de inteligencia artificial
juanaraujo139815
 
PPTX
NR-13.pptx treinamento sobre a norma regulamentadora
SimoniBorges1
 
PDF
Assistente de Suporte e Manutenção de Computadores.pdf
EudesAlvesPessoa
 
PDF
Apresentação sobre Funções Matemáticas e o módulo.pdf
Gabriel Vitor
 
Zeebo: Uma brevíssima introdução. - David Glotz
BluePanther6
 
Apresentação de Manipulação de strings em Python .pdf
Gabriel Vitor
 
SENAC Modelagem de Dados - Aula02 curso de ADS.pdf
JhonataLamim1
 
SENAC Modelagem de Dados - Aula01 do curso de ADSpdf
JhonataLamim1
 
IA - Grupo J.pdf para trabalho de inteligencia artificial
juanaraujo139815
 
NR-13.pptx treinamento sobre a norma regulamentadora
SimoniBorges1
 
Assistente de Suporte e Manutenção de Computadores.pdf
EudesAlvesPessoa
 
Apresentação sobre Funções Matemáticas e o módulo.pdf
Gabriel Vitor
 

IntroduçãO3

  • 1. Rodrigues(1999) afirma que, até o século IX, a elite participava da cultura “popular” 11 , e esta muito pouco tinha a ver com a cultura romana ou cristã. Entrelaçavam-se práticas e crenças que carregavam sem si origens longínquas, tramadas a partir dos ritos e mitos pagãos . Independente de classe social, todas as pessoas acreditavam numa magia existente no mundo, não havia uma distinção, ou instrumentos para fazer a distinção, do real e do imaginário, do possível e do impossível, do mito e da razão. Tudo era possível: as magias para o bem e para o mal; bruxos; mal olhados, pragas, espíritos da floresta... O mundo era mágico, os dialetos locais eram as línguas que teciam, através da tradição oral, o presente e que lançavam o futuro através das transmissões diretas de geração a geração. Nós espaços de convivência social( a rua, as casas, os mercados, as tabernas, praças, rinhas de galos, rodas de jogos, de música ou dança, as igrejas paroquiais) estavam o padre, o nobre, o artesão, o mercador e o camponês. Os alfabetizados liam, quase sempre, em voz alta, para um público de pessoas analfabetas ou pouco alfabetizadas, os mesmos textos e livros que circulavam em outros espaços sociais. Na outra ponta desta rede que tece a formação de certas maneiras de fazer e de sermos vemos surgir a economia mercantil nas cidades e as comunas. As comunas eram organizações gestoras não hegemonizadas pelo clero ou pela nobreza, mas com a participação de artesões e de mercadores que viviam nas terras do rei, pagavam tributos e eram protegidos por seus cavaleiros. Vivendo um mundo distinto do mundo dos castelos e _______________________ 11 A essa cultura do homem cotidiano costuma-se dar o nome de popular. Não vejo grandes razões para implicar com tal designação, já de certo modo consagrada nos meios acadêmicos e fora destes, no entanto, talvez seja necessário observar que o termo carrega um quê de anacrônico, quando remetido ao contexto medieval. É que, rigorosamente, a idéia de povo não fará sentido pleno senão em períodos históricos bastante posteriores – por volta do século XVIII – quando a separação entre povo e elite ter-se-à configurado com bastante nitidez, e quando as fronteiras entre as várias culturas do povo e as culturas de elite(também variadas) terão começado a ser mais significativas do que as relações e interpenetrações que apresentavam. (Rodrigues, 1999:36). dos mosteiros, estes homens e mulheres também produziram uma cultura e o aparecimento dos mestres livres, clérigos ou leigos, que ensinavam a quem desejasse aprender, se articulou com os anseios e desejos das elites comunais. É possível, assim, identificar também , no entrechoque de forças dos príncipes emergentes, do clero, das corporações de artes e ofícios e da burguesia mercantilista,
  • 2. algumas das transformações que produzirão quebras nas imagens-memórias do mundo medieval. Nas cidades medievais, por exemplo, o urbano e o rural eram invadidos um pelo outro, pois da janela de uma casa da cidade via-se o campo e bastava subir a colina para avistar uma torre da cidade. Homens, plantas e animais se misturavam nas feiras, e os muros que circundavam as cidades tinham uma função muito mais simbólica de demarcação de fronteiras e de defesa do que de definição de identidade social. Em toda cidade havia quem cultivasse hortas, jardins, pomares, bem como existiam pastos, paióis, celeiros e estábulos. As ruas medievais eram, para nossos padrões de hoje, ruidosas, estreitas e fedorentas, mas eram imensamente atraentes, pois representavam um espaço de comunicação, onde se partilhava a vida, o trabalho, o lazer. Não havia a oposição entre o espaço privado, que é a residência, e o público, como hoje nós percebemos (Rodrigues, 1999). O corpo era identificado como o lugar simbólico no qual se constituía a própria condição humana e, mesmo depois da morte, era em forma de corpo que se “via” o morto. A morte não significava algo necessariamente ruim, pois além de se conviver com ela muito de perto – morria-se muito – era considerada um grande sono. Dormir até o dia do Grande Despertar, ocasião em que praticamente toda a comunidade humana surgir- de corpo e alma – de seus túmulos particulares ou coletivos, para continuar a vida em maior proximidade do Criador, dos mártires, dos anjos, dos santos... O sono da morte representava apenas uma espécie de espera pelo dia do glorioso reerguer coletivo, grande festa comunitária de que deveriam estar excluídos, talvez, apenas os suicidas, os hereges, os regicidas, os sacrílegos (Rodrigues, 1999:62). Entre os séculos X e XIII surgem os homens livres, as Universidades e a Inquisição. O poder religioso e o poder real se imbricam e a Inquisição será um instrumento de poder e de saber, voltando para a produção de um consenso em torno de uma cultura para a fé, tendo como marca a identificação dos pecadores e hereges para puni-los, especialmente aqueles que apresentassem oposições aos saberes e poderes da Igreja e do Estado. Iniciam-se algumas transformações na configuração feudal européia, pois, com o crescimento das atividades comerciais, o limite entre a cidade e o campo passa a ser
  • 3. mais fortemente marcado. As cidades assumem o papel de centros comerciais e culturais, de criação e difusão de riquezas e de histórias, de narrações e contos sobre terras distantes e povos diferentes. A ampliação das atividades mercantis e o incremento das práticas manufatureiras provocam a imaginação e a vontade de conhecer. Esta se trama com o surgimento de alguns clérigos e estudiosos que, nem sempre diretamente ligados à Igreja, são recebidos nas comunas e incentivados a permanecerem. No final da Idade Média, a Igreja intensificou sua atuação como agente educativo e de instrução nas cidades. Buscando a salvação das almas, ela fez intervenções nas expressões culturais locais. As tavernas e as feiras viviam constantemente cheias de viajantes, entre eles, religiosos, prontos a contar histórias de outras crenças, de outras formas de viver. A igreja desejava um maior controle sobre essas imagens-memórias circulantes. Surgiram nas cidades as corporações de artes e ofícios. Nos seus estatutos apareciam normas que regulavam não somente as relações externas de artes e ofícios com o poder público e com o mercado, mas também as relações internas entre os trabalhadores, que podiam ser mestres, sócios, aprendizes e também diaristas assalariados. Nas corporações podia-se aprender saberes práticos. É importante destacar que essas se constituíram a partir da iniciativa dos próprios artesões, e que em seus estatutos havia a previsão de uma maior dependência do discípulo em relação ao mestre, ao contrário do que ocorria nas universidades medievais. Manacorda (1996) nos conta que em geral, as artes sórdidas não expressaram, nem sistematizaram e nem tornaram pública a sua ciência. E ademais: seus protagonistas sempre tiveram como cultura os fragmentos da ideologia das classes dominantes, que os acultuavam, e só algumas migalhas de instrução formal do ler, escrever e fazer contas. Mas, logo teremos de prestar maior atenção também ao surgimento de uma cultura mais orgânica dos produtores (p.167)
  • 4. 19 Anciões e aprendizes distinguiam-se dentro das corporações, pois, enquanto um era chamado de “magistri”, o outro era o “discipuli”. Os jovens aprendiam na “escola do trabalho conjunto” com os adultos e, para que isso ocorresse, havia um contrato entre o pai do jovem e o mestre. O sistema de produção realizado dentro de casa, com o auxílio da família e de alguns agregados, derivou da forma de produção desenvolvida na Idade Média.Tudo o que era consumido naquele período era feito em casa pela própria família. Os camponeses eram responsáveis pela fabricação de bens de consumo em todo o seu processo. Uma outra questão marcante e que diferenciava a Idade Média da Modernidade refere-se à dimensão da temporalidade. A hora de acordar ou de dormir estava ligada diretamente às estações do ano e à luz produzida pelo sol. Havia uma interpenetração da vinda secular e da clerical nas cidades, visto que as horas eram marcadas pelos sinos de um ______________ 19 imagem - No início da produção manufatureira, o artesão trabalhava em casa e lá mesmo vendia seus produtos. Nesta iluminura de Jean du Ries, de 1482, vemos o trabalho de um carpinteiro e de um canteiro sob a vigia de um representante real. 20a imagem -Uma das características da produção de bens na Idade Média era o trabalho familiar, como podemos ver nesta iluminura do século XVI. 20b Santo Agostinho séc. IV e V .21 Aristóteles.22 a idade média 22b Maquiavel mosteiro. Comparado ao mundo moderno, o tempo vivido medieval era largo e as horas de trabalho se interpenetravam com as horas das refeições e do lazer
  • 5. 20a 20b Entre os séculos IV e V, Santo Agostinho fez algumas reflexões sobre o tempo, e o dividiu em três: presente, passado e futuro. O tempo agostiniano é abordado a partir da explicação do princípio do Gênesis, e sua análise caminhava fundada na essência religiosa de uma filosofia teísta, que nos salta aos olhos ao ler o “livro XI: o homem e o tempo”. O autor teceu a relação entre tempo, Deus e a criação do mundo e, quando faz a discussão sobre o que fazia Deus antes da criação do mundo, opta por dizer que não sabe, embora afirme logo a seguir: Mas eu digo, meu Deus, que sois o Criador de tudo, o que foi criado. Se pelo nome de “céu e terra” se compreendem todas as criaturas, não temo afirmar que antes de criardes o céu e a terra não fazíeis coisa alguma. Pois, se tivésseis feito alguma coisa, que poderia ser senão criatura vossa? (Santo Agostinho, 1996:320) As imagens teocêntricas de tempo e de universo se articulavam como conhecimentos guardados nos corredores, bibliotecas e salas dos mosteiros cristãos. Não havia uma concepção de tempo seriado na vida humana. A divisão etária, como hoje a conhecemos, não fazia parte das imagens do mundo medieval. Conta-nos Áries (1981) que, até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representa-la (p.50), pois, nas representações de jovens e crianças, presentes em diferentes lugares, estes aparecem como adultos em miniatura. Sua compleição, a rigidez muscular e as feições eram representadas como as de um adulto, porém em escala menor. A educação das crianças se dava na convivência com os adultos, em que os saberes deveriam fortalecer o corpo, aguçar os sentidos, habilitar corpo e alma para superar os reveses da sorte e gerar novos filhos, assegurando a continuidade da família.
  • 6. O sentido da infância não trazia em si o significado de afetividade ou uma interpretação das particularidades e diferenças inerentes a esta faixa etária como hoje a vivemos. Na verdade, o que era determinado como infância relacionava-se mais com a possibilidade de sobrevivência do que com as características próprias, pois a mortalidade infantil era muito alta. Somente após uma determinada fase da vida do sujeito é que se identificava mais objetivamente aquele ser como participante do mundo, como “alguém com quem se poderia contar”. Essa passagem se dava mais ou menos quando a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou ama e, a partir, ela ingressa na sociedade dos adultos e já não se distinguia destes (Áries, 1981) Nas universidades os conteúdos de ensino baseavam-se na análise de temas conexos à Filosofia, Teologia e aos conhecimentos sobre a natureza. A imagem que organizava a leitura do mundo passava necessariamente por uma concepção teísta, pois os que ousavam questionar as verdades já estabelecidas pela Igreja enfrentavam os caminhos inquisitórios. A igreja manteve seu controle sobre as universidades. Em 1215, por exemplo, na Universidade de Paris, é proibida, pelo Legado do Papa, a leitura da Metafisica e da Física de Aristóteles. Pouco depois o papa Gregório IX rompeu mesmo a integridade dos textos, mandando extrair edições expurgadas de afirmações contrárias aos seus dogmas(Manacorda, 1996). 21 As universidades foram se formando pelo afluxo de estudantes e de professores de diversas cidades; havia os “vagantes”, os licenciados dos mosteiros e os laicos 12.
  • 7. Entre os vagantes honestos, existiam aqueles que, para sobreviver e pagar seus estudos, lecionavam e até lavavam a roupa de seus estudantes(manacorda, 1996). Havia também alguns estudantes de vida errantes que escreviam em latim versos soltos de cunho satírico, em geral critica social e que, por, vezes, se dedicavam a função de jogral ou teatro para ganhar a vida, levando os tempos de universidades mais para os divertimentos licenciosos do que era considerado estudo “sério”. 22 Mestres Idade Média Em algumas cidades os mestres livres criavam escolas e davam aulas aos interessados que pagavam, a um aluno, indicado pelo professor, que realizava a coleta. Destaco aqui a figura de Abelardo22, cuja fama corria fora dos limites franceses e que, após afastar-se da Universidade de Paris, instalou-se no monte Sainte-Geneviéve. Hoje este é considerado o primeiro núcleo de universidade livre na França e tornou-se o maior centro de cultura sagrada e profana, para o qual ocorria a mais seleta juventude estudiosa de toda a Europa (Reale, 1990:511). Misturado ao povo, os mestres-estudantes nem sempre recebiam por seus ensinamentos. A relação com a cidade hospedeira era conflituosa. Havia o interesse da elite política e financeira em fixar grupos de estudiosos sem seus domínios, mas havia também os problemas de convivência com os goliardos13 que , apesar de sua atuação explosiva e combatida com dureza pelas autoridades locais, produziram uma diversidade de poesias e cantos que muito tem ajudado aos pesquisadores a compreender um pouco mais as imagens-memórias dominantes da época. Um bom exemplo são os versos da coletânea Carmina Burana, que falam de mulheres, vinho, caça desesperada ao dinheiro, conflitos com os mestres e os cidadãos ( Manacorda, 196:147).
  • 8. Os mestres livres, para protegerem-se, em alguns lugares, constituíram associações semelhantes às corporações de artes e ofícios, que eram juridicamente reconhecidas e tinham como objetivo dar assistência aos seus membros e tutelar os interesses comuns, tanto dos doutores como da cidade hospedeira. Nobres e burguesia mercantil, entre contradições e enlaces, davam apoio político e financeiro para que grupos de professores permanecessem na cidade. A igreja mantinha uma espécie de supervisão através da concessão, com exame prévio dos títulos de estudo e de autorização para ensinar. Assim, conclui Manacorda (1996), nota-se uma continuidade ininterrupta, pelo menos na direção política, entre escolas episcopais e universidades (p.150), e também uma ruptura, pois o contato daqueles mestres com o mundo, que acontecia fora dos mosteiros e das universidades controladas pela igreja, criava tensões constantes tanto nos limites da cultura clerical, como na cultura do restante da sociedade. ______________ 12 Entre os professores laicos dessa época temos Pedro de Abelardo, cuja história é bastante conhecida. Abelardo, professor de teologia e filosofia em Paris, foi morar na casa do cônego Fulbert. Este lhe entregou a educação da sobrinha, pois desejava que Heloisa tivesse uma educação que o permitisse conseguir um bom dote por ocasião de suas núpcias (Abelardo, 1989).13 Os goliardos são figuras que aparecem nesta época da história , são jovens estudantes. Revelavam-se por diferentes motivos, entrando em conflito com os cidadãos e as autoridades da cidade. Esta rebelião, segundo Manacorda(1996), tem algo de novo para o panorama da história.14 Literatura em vulgar era aquela escrita em latim vulgar. O latim clássico, consagrado pelas classes cultas e pela literatura, tornou-se, com o tempo, distante da expressão falada, que aglutinava influências de ordem vária nos diversos territórios do Império Romano, assim como variedades socioculturais, a cujo conjunto chamou latim vulgar que deu origem às línguas românicas e nomeadamente ao português. (literatura/língua.......) Os mestres livres tornaram-se protagonistas da nova escola do terceiro estado mais ou menos a partir de 1.200. Nestas, as atividades relacionavam-se com a organização da sociedade de mercadores e artesãos que trabalhavam nas cidades organizadas em comunas. Com estes mestres, o conteúdo do ensino se alterou e o nascimento das literaturas em vulgar14, que se diferenciou em conteúdo e forma da anterior, foi mais um fio na trama das transformações que vão sendo produzidas, especialmente na Itália, na França e na Inglaterra. Manacorda(1996) identifica nesta época, um conflito que ainda se faz presente em nossa memória: a contradição entre a imagem de docência como sacerdócio e como comércio. Os mestres livres não se casavam; entre outros motivos estava o fato de não poderem assumir financeiramente sua família, pois não havia vencimentos regulares. Contudo, os mestres de oficio garantiam, através de contratos, o pagamento em dinheiro ou em forma de trabalhos, por seus ensinamentos, havendo a partir daí uma relação mercantil explícita com o ensino.
  • 9. A instrução vista como uma preparação profissional para as artes do “fazer” produtivo passou a se dar voltada para a aplicação objetiva no mundo profissional. A gramática ou as letras, por exemplo, foram assumidas em suas conexões com a possibilidade de ampliação do comércio. As escolas de ofício se diferenciavam tanto da educação nos mosteiros, onde a gratuidade das ciências era um principio, pois um dom de Deus, como da educação dos mestres livres, na qual a relação com o conhecimento se dava por uma constante tensão entre o estabelecido e a vontade de interpretar de forma mais acertada o mundo. Entrando nesta trama de ressignificação dos saberes, Najmanovich (2001) relata- nos que, no século XIII, chega ao Ocidente uma nova matemática, vinda do mundo árabe. Essa é apropriada pelos homens que Estavam extremamente envolvidos no intercâmbio mercantil e na eficácia comercial. Para os habitantes das cidades européias dessa época, “contar rápido e bem era uma necessidade cotidiana (Benoit, 1989). A vida do cidadão era o cenário onde o cálculo se foi convertendo em um valor indispensável para a vida” [...](p.17) A burguesia mercantilista, mais especialmente a italiana e a francesa, articulou imagens-memórias do antigo e do novo tempo, tecendo o orgulho de serem mercadores à vontade, de se parecerem com a aristocracia. Elias (1994c) nos conta que, nesta época, começaram a aparecer, em distintos lugares, obras tratando do comportamento “civilizado”, em que são descritas formas de comportamento e cuidados com o corpo. Começavam a ser pintadas na corporeidade da nobreza novas e distintas marcas. Nessa mesma época algumas comunidades passaram a assumir o pagamento de um ou dois professores que deveriam iniciar os jovens da cidade nas letras e na matemática. Rodrigues(1999), tratando mais especificamente das questões do corpo, afirma que o corpo medieval não era definido pelos músculos, pela força, pela resistência, pela disciplina ou pela rentabilidade que poderia gerar, não era o corpo-ferramenta inventado pela sociedade da produção. Não era propriedade privada ou um corpo consumidor, e sim, comparativamente preguiçoso, sem grande preocupação com o tempo e com trabalho, mais voltado para as festas e para a espera que para os empreendimentos e investimentos (p.83). Contudo, a produção de algumas regras de convívio e a
  • 10. organização da formação de pessoas para as artes e ofícios geraram novas imagens. O corpo foi assumindo uma conotação instrumental, foi se transformando em uma ferramenta para a produção econômica da família, da comunidade e, com o tempo, para a manutenção do próprio indivíduo. No final do século XII e início do século XIV, já existia uma estrutura escolar que ia além daquela organizada pelo clero. O número de estudantes cresceu muito e se reunia em grupos de várias idades e de diferentes níveis de formação. Assim, os mestres destas escolas acabavam contratando monitores ou repetidores que tinham como tarefa ajuda-los nas aulas. Os monitores ajudavam também a manter a ordem enquanto o mestre atendia a um determinado grupo. Os mestres livres, infiltrados no campo dos clérigos, alteraram as formas de gestão da atividade educacional e até mesmo os conteúdos. Manacorda (1996:174) nos conta que, em cidades como Florença, Gênova e Milão, as associações dos mestres formaram corporações sem ligação com os collegia doctorum ou as universitates dos studia generalia que eram organizações eclesiásticas. O declínio da Idade Média fez surgir também uma corporeidade especifica das cortes, dos mosteiros, dos castelos e uma educação cavalheiresca, que convivia com a educação do clero. Inicia-se uma transmutação na formação da nobreza. Esta vai assumindo um caráter de preparação nas técnicas de guerra e de política, nas quais os meninos nobres passam a ser treinados em jogos de valentia, com bolas ou varas, em exercícios como arremesso de pedra e introduzidos nos primeiros manejos de armas, na arte de cavalgar e na oratória. Surge um corpo cortês, governado pela formalidade, que ficou mais ou menos cristalizado no imaginário da literatura referente aos tempos medievais(Rodrigues,1999:83). Essa corporeidade associada à cavalaria, com seus gestos e vestuários estudados e contidos, precavidos, disciplinados, militarmente, onde os mínimos detalhes estão formalizados, tem sua gramática normativa e é um germe do corpo individual. A preocupação com as maneiras corporais, com o modo de ser e o seu controle, ganha relevância entre os nobres e os que com eles conviviam. Na França, assim como em Portugal e Espanha, por exemplo, era comum o convívio entre os nobres, o clero e a burguesia mercantil. Vai surgindo a imagem do indivíduo; algo que, durante o medievo, era inconcebível, pois cada sujeito estava diretamente em interação com o Cosmos, com os demais membros da família ou da aldeia. A criança, por exemplo, vivia e aprendia no
  • 11. espaço comunitário e, apesar de a pessoa viver em seu próprio corpo carnal, este estava em íntima relação de dependência com a linhagem, havia uma solidariedade de sangue. O corpo era seu, mas era também um pouco o outro, pois se considerava um rebento do tronco comunitário, uma parte do grande coletivo que, pelo engaste das gerações, transcendia o tempo (Gélis,1991:312). Elias (1993) nos narra que, no final dos tempos medievais, se inicia a constituição de algo que se tornará mais do que uma sociedade de corte. É uma aristocracia de corte que se constitui, uma elite que se entranha por toda a Europa ocidental, tendo, inicialmente, como centro Paris. Esta estruturará uma nova forma de ser. Os membros desta sociedade multiforme falavam a mesma linguagem em toda a Europa: inicialmente o latim e o italiano, depois o francês. Liam os mesmos livros, tinham os mesmos gostos, as mesmas maneiras e – com diferença de grau – o mesmo estilo de vida, submetendo-se a uma convenção muito rígida de conduta, a uma grande formalidade quanto à moderação dos afetos e uma regulação cada vez mais rigorosa das maneiras e da gestualidade. (Rodrigues,1999:34) A educação desta elite já não se restringirá às artes da guerra. Era necessário saber mais do que lutar. A honra, o comportamento moral correto, tornou-se a glória do cavaleiro e para o futuro rei e sua corte passou a ser indispensável o aprendizado das ciências, saber ler, ser curioso conhecedor, saber caçar e ter boas maneiras (Manacorda,1996) Concluindo a apresentação de alguns dos caminhos que configuraram a Idade Média, é importante destacar a estruturação dos Estados Absolutistas, em tempos diferentes e com suas particularidades, e as produções filosóficas, políticas, artísticas, cientificas e técnicas inglesas, alemãs, italianas e francesas. Estas vão contribuir para alterar radicalmente o mundo Europeu e a vida dos homens e mulheres que habitavam aquele espaço-tempo. Perde-se a relação mágica com o mundo e seus caminhos serão agrupados de formas diferentes, mas estarão presentes na configuração dos novos mapas políticos e culturais que se estavam formando. 2.2 – Semelhanças, unicidade, multiplicidade e divergências
  • 12. Até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande parte, conduziu a exegese e a interpretação dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representa-las. O mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem. A pintura imitava o espaço. E a representação – fosse ela festa ou saber – se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar.(Foucault, 1992:33) Os acontecimentos que se desenvolveram no fim do século XV e início do XVI na península Ibérica são marcantes, pois as Grandes Navegações fizeram com que se tocassem distintos tempos e culturas, produzindo uma área híbrida contendo o hoje que se enlaça ao amanhã e o toque entre diferentes. Para nós, sul-americanos e brasileiros, é importante relembrar não apenas as grandes navegações como também o fato de Portugal e Espanha terem sido os primeiros a se organizarem na forma do estado moderno absolutista. Portugal surgiu como reino independente em 1139 e, até a metade do século XIII, permaneceu envolvido na luta pela expulsão dos mouros da Península Ibérica. Da segunda metade deste século até 1325, houve uma reorganização interna e a delimitação de fronteiras. Em 1383, após a Revolução de Avis, com a vitória de D. João, iniciou-se um novo espaço de poder para a burguesia mercantil portuguesa. A nobreza agrária foi submetida ao rei que, centralizando o poder, favoreceu a expansão marítimo-comercial transformando Portugal no primeiro país europeu a constituir um Estado absolutista e mercantilista. Na Espanha, a partir do século XIII, só dois reinos encontravam-se em condições de disputar a liderança cristã: o de Castela e o de Aragão. Em 1469, a rainha Isabel, de Castela, casou-se com o rei Fernando, de Aragão, unificando politicamente a Espanha e possibilitando a expulsão dos árabes. Fortalecido o poder real, que foi apoiado pela Igreja e “ajudado” pela burguesia mercantil, a Espanha também se lançou ao mar. As Grandes Navegações criaram novos fluxos de riqueza, de deslocamentos do homem no Planeta e recompuseram a imagem-memória de diferença. Portugal e Espanha eram, no dizer de Holanda (1995); territórios-ponte pelos quais a Europa se comunicava com os outros mundos, zonas de fronteira que, se eram menos carregadas
  • 13. de europeísmo, se deve aos múltiplos contatos com as culturas africanas e do oriente. Sua elite, contudo, procurava preservar-se e mantinha-se atenta aos acontecimentos parisienses e neles também se inspirava quando lhe convinha. A partir do século XV, tempos em que a escola e a cultura vão se tornando parte da trama dos novos interesses e concepções de mundo da nobreza, da burguesia mercantil e também da Igreja, vão sendo esculpidas15 novas imagens-memórias de conhecimento. Diferenciado das imagens presentes no período medieval, onde os livros eram raros e caros e o aprendizado era feito com o corpo e o coração, gravando-se apenas na memória corporal o que se devia ou não se devia fazer em sociedade, esse período vai nos deixar como principal imprinting, uma sistematização, uma intencionalidade mais generalizada de organização dos fazeres e dos saberes. Conta-nos Elias (1994c) que a sociedade e as maneiras estavam em “transição”e que a oposição simples entre bom e mau se perdeu. Criou-se uma forte diferenciação entre eles, e se produziu um maior controle das emoções humanas. Parece, por exemplo, que a substância e, talvez, também os costumes da sociedade passaram por certas mudanças nos séculos XIV e XV com ascensão das guildas de ofício e de elementos burgueses(p.73). As regras e as maneiras para o trato com o outro, que passavam de boca em boca, a partir de versos rimados ou manuscritos de sacerdotes, tomam corpo. Com a criação da imprensa produz-se uma articulação do texto no corpo, mediante a escritura. A ordem pensada – texto concebido – se produz em corpos – os livros – que as repetem, formando calçamentos e caminhos, redes de racionalidade através da incoerência do universo (Certeau, 1994:236). Assim, são apresentadas por escrito e de forma sistematizada algumas regras de civilização. E Thomas Morus (1480 – 1535). De origem inglesa, esse pensador escreveu uma notável crítica à sociedade de sua época no livro Utopia. Nicolau Maquiavel22b (1469 – 1527). O italiano Maquiavel ganhou notoriedade por ter escrito O Príncipe, que traça as diretrizes do poder no Estado moderno e sua corporeidade vista até nossos dias..
  • 14. 22b Erasmo de Roterdã (1466 ou 1467- 1536). Nascido nos Países Baixos, é considerado um dos principais humanistas do renascimento. Seu texto mais conhecido é Elogio da Loucura, no qual faz críticas contundentes aos poderes constituídos, inclusive à Igreja Católica escreveu e divulgou seu De civilitate morum puerilium.Voltada para a educação de crianças da elite político-cultural e dedicado ao filho um príncipe, tornou-se um livro de referência quando veio a público em 1530. Foi reeditado em vários países. Nele o comportamento das pessoas em sociedade, o decoro corporal externo são tratados como parte da instrução que deveria receber o homem livre. A maneira de olhar a postura ao senta-se à mesa para as refeições, os gestos, o vestuário, as expressões faciais e o asseio corporal são alguns exemplos do que versa o livro. Elias nos informa que Com toda certeza Erasmo não compilou simplesmente esse tratado à vista de outros livros[...] ele tinha diante dos olhos um código social especial, um padrão especial de maneiras. Este tratado é, na verdade, uma coletânea de observações feitas na vida e na sociedade. É, como disse alguém mais tarde, “um pouco do trabalho de todo mundo” (1994c:83). Mas quem era esse homem livre? O homem humanista, nascido dentro das universidades controladas pelo clero, rompeu seus muros e tomou como centro de sua elaboração as Academias. Estas eram livres associações de doutos que opõem a leitura dos clássicos e as pesquisas inovadoras às velhas repetições do saber universitário. Para eles à universidade só restava adequar-se ao novo curso da cultura para não decair irreversivelmente (Manacorda, 1996:179) Uma nova imagem de homem é produzida: agora ele está no
  • 15. centro do universo. A imagem teocêntrica de mundo e de conhecimento que dominava a cultura medieval, de uma maneira geral e especialmente nos mosteiros e universidades, vai disputar espaço com as formas emergentes. O humanismo retoma a leitura dos clássicos gregos e latinos gerando nos novos intelectuais uma aversão á cultura medieval e ao tipo de escola que dominava a educação, com seus mestres e seus castigos corporais. Era próprio do humanismo e do renascimento a procura de uma forma mais humana e mais culta de educar a criança; entretanto, quando se fala de criança, não se está falando de todas as crianças. Trata de um movimento tipicamente aristocrático, dentro dos padrões de organização política dos Estados absolutistas. Manocorda (1996) nos narra que as pedagogias desta época, mesmo as não humanistas, apresentavam de forma recorrente a questão de se ter em conta a natureza da criança. Essa “natureza” não se referia ás suas características de maturidade psíquica ou física, mas apresenta-se como uma naturalização do seu lugar social, no qual o “natural na nobreza16” é a dignidade, a fortuna, a bondade, a beleza, a prudência, o juízo, enfim, os requisitos que, ainda hoje, em nossas memórias, se referem ao lado positivo da existência. Nos tratados de pedagogia humanista se dava importância á leitura dos textos gregos, até então ignorados ou tidos como heresias. Ganharam importância, também o amor pela poesia, uma vida em comum entre mestre e discípulo, as disputas doutas acompanhadas por passeios pelos campos, diversões, jogos e brincadeiras, bem como o respeito pelos jovens. Esses elementos vão compor um quadro pedagógico para a formação da elite, na qual as punições corporais serão excluídas. Alguns professores procuravam que os estudos fossem feitos “como todo gosto”, utilizando-se de jogos como método educativo. Foi retomada uma concepção de educação que ampliava o espectro dos conteúdos a serem ensinados, que passaram a caminhar dos livros clássicos à música, das artes aos exercícios físicos, próprios da tradição cavalheiresca. Será, no
  • 16. entanto, uma educação para os homens, e, apenas, para algumas poucas mulheres, nascidos nobres e livres. _____________________ 15 Esculpir aqui não a uso só no sentido comumente empregado de retirar para dar forma nova à matéria bruta, mas também de agregar elementos de diferentes naturezas, como são as esculturas africanas e as surrealistas, produzindo híbridos.16 Nietzche(2001) nos ajuda a rememorar que “bom e mau”, “bom e ruim” são criações humanas. Ele mostra alguns estilhaços de duas tramas de saber e poder que foram constituindo algumas das imagens que passaram a representar os valores morais presentes na nossa sociedade. Essas tramas partem da valorização da forma de existência da nobreza e da forma da existência sacerdotal Erasmo, envolvido com o processo de produção da sociedade cavalheiresca, apresentou alguns encadeamentos que se constituíram em um dos principais papéis que a escola viria a cumprir na sociedade industrial. Elias(1994c:68-9) nos conta que, na introdução do livro de Erasmo, esta presente a afirmação de que “a arte de educar jovens envolve várias disciplinas, mas que a civilitas morum é apenas uma delas” e não nega que esta é a “crassissima philosophiae pars” (a parte mais grosseira da filosofia)”. Com outros fragmentos, desenvolvem-se, em várias cidades da Europa, as escolas de artes liberais e as artes produtivas. Estas eram voltadas para a produção e tinham como alunos os filhos de mercadores locais, de artesãos e de alguns poucos pobres e miseráveis, que contavam com uma certa cooperação dos mestres de ofício. Os estudos estavam efetivamente voltados para a produção material e o cálculo era muito valorizado. Nas escolas de artes liberais a gramática era o instrumento principal. Segundo Manacorda(1996), havia um professor chamado Vergério que afirmava ser esta o instrumento para qualquer estudo liberal e a considerava como a primordialis scientia paedagoga. Assim, vemos aparecer, já nos séculos XVI e XVII, algumas das imagens que farão parte das acaloradas discussões do século XVIII e que, ainda hoje, se fazem presentes em nosso cotidiano escolar. O humanismo se produziu uma marcação identificável na divisão social, concorrendo para que novas marcas fossem sendo estabelecidas, entre elas, a de civilização. Na França do século XVI foi gerada uma distinção entre aquelas pessoas que a tinham e as outras. Segundo nos conta Elias (1994c), o sucesso, a rápida disseminação e o emprego do livro de regras de civilidade, como manual educativo para
  • 17. meninos, mostram que este atendia a uma necessidade social, pois registrava os modelos de comportamento para os quais estavam maduros os tempos e que a sociedade – ou mais exatamente a classe alta, em primeiro lugar – exigia (p.83). Erasmo dará nitidez a força a uma palavra muito antiga e comum, “civilitas”. Este conceito foi impresso nas corporeidades da época com o sentido que recebeu e palavras correspondentes surgiram em várias línguas em um mesmo período: civilité (na França), civility ( na Inglaterra), civilitá ( na Itália) e Zivilitat ( na Alemanha)17. Segundo Manocorda(1996), da confluência da proposta de escola humanista com a escola de artes produtivas nasceu uma terceira forma de pensar a formação do homem. Homem este que, segundo Certeau (1994), se reconhece como fazedor de sua história, colocando-se como um potencial transformador do mundo, a partir de suas ações. Assumindo o homem como o novo centro do mundo, o humanismo produziu uma radical transformação na cultura da elite e gerou um eu que se diferenciou do grupo e se radicalizou. Duby(1990) nos aponta para o fato de que o embrião deste indivíduo já estava presente desde o século XII com o florescimento da autobiografia. Conta-nos que, por certo, Abelardo, um Guibert de Nogent imitam modelos da Antiguidade; mas essas obras literárias afirmam com brilho a autonomia da pessoa senhora de suas próprias lembranças, como o é de seu próprio pecúlio(p.507-8). Vai desaparecendo a palavra cosmológica, desaparecem os lugares preestabelecidos e a identidade do novo homem que surge liga-se ao seu potencial de produção, perpassado por uma iniciativa interminável, em face da necessidade de construção da nova ordem que se instala. O corpo que se comunicava com o exterior se fecha e passa a ser compreendido pelo funcionamento especifico, um funcionamento singular que [...] contará com o desenvolvimento das regras de civilidade[...] e fará do corpo algo semelhante a uma máquina, contribuindo para a produção da subjetividade do homem moderno (Sant’Anna, 1996:245). Tal corpo vai se tornar padrão lá pelos séculos XVII e XVIII, quando se estruturou a idéia de indivíduo, e é ainda hoje o top de linha da Modernidade. Certeau(1994) nos conta que foi necessária uma longa história, do século XV ao XVIII, para que esse corpo individual fosse “isolado”, da mesma maneira como se
  • 18. “isola” um corpo em química ou em microfísica: para que então se tornasse a unidade básica de uma sociedade, após um tempo de transição onde apareceria como miniaturização da ordem política ou celeste – um “microcosmo”. Ocorre uma mudança dos postulados socioculturais, quando a unidade de referência progressivamente deixa de ser o corpo social para tornar-se o corpo individual, e quando o reino de uma política jurídica começa a ser sucedido pelo reino de uma política médica, da representação, da gestão e do bem-estar dos indivíduos. (p.233-4) Para a elite político-cultural européia, que se organiza e se pensa como padrão – o normal, o bem e a verdade -, os demais seres humanos passam a ser comparados a sua perfeição. Não apenas as formas político-administrativas e espirituais são tomadas com critérios de comparação, também as práticas corporais entram como elementos para a produção das classificações. Os outros passam a ser ordenados de acordo com o grau de diferença e de semelhanças que possuem com o modelo de cultura da elite européia. Inclui-se na ordenação a idéia de falta de. Na mulher, falta o pênis, nos habitantes do campo, falta a urbanidade, nos não-cristãos falta a fé, nos habitantes da colônia, há falta de habilidade de viver a vida da Corte, nas crianças, há falta de educação, de postura, de autocontrole. A natureza vai sendo desmistificada nos diferentes campos do conhecimento e o desencantamento chega ao corpo por caminhos diversos, tramando uma outra sensibilidade humana. São marcantes as descobertas como as do padre polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) e também as de Giordano Bruno. O primeiro publicou anonimamente em 1514, sua idéia sobre o sol ser o centro estático em torno do qual a Terra e os planetas se deslocavam em órbitas circulares. O segundo escreveu e falou sobre a infinitude do Universo e afirmou ser Deus apenas o princípio inteligente que lhe deu origem. A relação existente entre o saber e o divino foi sendo rompida, bem como foram desfeitas as correspondências entre o corpo e o mundo, nas quais os equilíbrios e desequilíbrios na ordem do cosmo produziram alterações no e do corpo. A abertura do corpo humano, por exemplo, que na cultura medieval era inconcebível por tratar-se do lugar do espírito, torna-se comum e a anatomia humana ganha o centro das atenções, especialmente nos espaços da cultura de elite, nos séculos XV e XVI.
  • 19. _______________ 17 Segundo Elias(1994c) a relação próxima que ocorreu na França entre intelectualidade, aristocracia e burguesia não se deu na Alemanha, e esta palavra nunca alcançou a mesma extensão que as palavras correspondentes alcançaram nas outras grandes culturas. Sendo assim, o conceito francês de civilisation reflete o fato social especifico da burguesia da nação exatamente como o conceito de Kultur reflete o alemão(p.63). 23 Galileu Gallilei. 24Nascimento de Vênus Sandro Botticelli 25 Dr. Tulp em dessecação de corpos As primeiras dissecações oficiais ocorreram em universidades italianas no século XIV e precisaram de uma autorização do Papa, pois, do contrário, seriam interpretadas como heresias e severamente punidas. Eram precedidas de rituais, com a função de aplacar e redirecionar as forças perigosíssimas que o olhar invasor libertava; talvez representasse um meio simbólico de prevenir os homens contra a ameaçadora destrutividade que o olhar objetificante silenciosamente prenunciava ( Rodrigues,1999:59). Essas idéias aliadas a outras tantas descobertas, como a do telescópio, foram deslocando o foco teísta de produção do conhecimento. Esses deslocamentos fizeram, por exemplo,Galileu Galillei23 (1564-1642) sentir o sopro da morte quando, em 1609, afirmou que o sol era o centro do universo. Os decalques de Galileu se fizeram a partir de suas observações astronômicas que confirmaram a validade da teoria heliocêntrica e rompeu com a visão geocêntrica. 23 Considerando pai da física moderna, foi o primeiro a combinar experimentação científica com o uso da linguagem matemática para formular as leis da natureza descobertas por ele, sendo considerado, por alguns cientistas, o pai da ciência moderna. Acreditava que a filosofia estava escrita no mundo, esse grande livro que permanece sempre aberto diante de nossos olhos, mas que, para desvenda-lo, era preciso primeiro entender a linguagem e os caracteres com que foi escrito. Para ele o mundo havia sido escrito em Matemática e os caracteres eram os triângulos os círculos e outras figuras
  • 20. geométricas. O uso da descrição matemática da natureza tornou-se dominante na ciência do século XVII. Capra (1999), citando Laing, nos conta que essa racionalidade nos levou a perder a visão, o som, o gosto, e o olfato, e com eles foi-se também a sensibilidade ética e estética. Segundo o mesmo autor, nada mudou tanto o mundo como a obsessão dos cientistas pela medição e pela quantificação do mundo. O conceito de tempo se transformou, havendo um entrelaçamento com o de espaço e o de movimento dos planetas. Em 1687, já no final do século XVII, Sir Isaac Newton publicou o seu livro Princípios da filosofia natural no qual foi desenvolvida a teoria de como os corpos se movem no espaço e no tempo, bem como uma complexa matemática para analisar tais movimentos. Ele definiu o tempo como uma grandeza absoluta, cuja passagem é sempre constante, independente do observador (e que aprendemos, ainda hoje no ensino médio). Também elaborou a complexa lei da gravitação universal, de acordo com a qual cada corpo no universo é atraído por todo e qualquer outro corpo, por uma força tanto mais intensa quanto forem os corpos e mais próximos estejam uns dos outros (Hawking,p.22) Nas artes plásticas o homem, que olhava para as imagens sagradas ou para o céu, voltou seu olhar para o si próprio e viu os desejos humanos. O mundo não era mais pensado
  • 21. 24 como um lugar de sofrimento e sim um lugar de delícias, onde o ser humano, a mais perfeita das criações divinas, foi colocado para ser feliz, para usufruir dos benefícios e das belezas de tudo o que a rodeia, inclusive o próprio corpo. As entranhas corporais podiam ser agora vistas e ali estavam elas expostas em “ A aula de anatomia do Doutor Tulp”, pintado por Rembramdt em 163225. 25 Dr. Tulp A pedagogia entendida também como regras de civilidade, a Medicina e a Arte se apropriaram do corpo como novo objeto a ser olhado, estudado e mesmo adorado, queriam, acima de tudo, conhecer, estudar, aprender, e os textos da cultura clássica foram vistos como portadores de reflexões e conhecimentos a serem redescobertos. Sendo o homem a medida de todas as coisas, a valorização do ser humano.Leonardo da
  • 22. Vinci (1452 – 1519), que defendia uma educação voltada para a prática objetiva, fez inúmeros estudos anatômicos a partir da dissecação de cadáveres e Miguel Ângelo (1475 – 1564) estudou os cadáveres para identificar as articulações, os ossos, os ligamentos, etc18. ___________________ 18 A academia das Artes de Desenho, em Florença, foi a primeira a instituir o ensino obrigatório da anatomia, se antecipando até mesmo ás escolas de medicina. Contudo, as dissecações multiplicam-se na Europa e muitas podem ser assistidas pelo público, pois a curiosidade para ver os segredos da carne humana era enorme. 26 Na foto, a escultura David, de Michel Ângelo, concluída em 1504. 26 David, 1504 A valorização do ser humano resultou na criação de muitas telas e esculturas que valorizavam as formas humanas ou que retratavam corpos nus. A escultura David, de Michelangelo, concluída em 1504. As pessoas anatomizadas não pertenciam ao mundo da cultura de elite; eram condenados, indigentes e pobres em geral. Pagavam com a exposição de suas vísceras os “gastos” que a sociedade teve com eles. As dissecações contribuíram para modificar o imaginário do homem ocidental e desmistificaram o cadáver, laicizando-o e colocando-o a serviço da ciência. O corpo humano depois de morto, aberto e
  • 23. desmembrado pelas mãos daqueles que o dissecam em nome da ciência, tende a se transformar num livro rico de explicações que, segundo Vesálio, não mente jamais (Sant’Anna, 1996:248). O humanismo italiano tornou-se europeu e há, de uma forma, uma autocrítica quanto ao aspecto de seu pedantismo. Erasmo de Roterdã era também um humanista cristão, que lia os clássicos. Torna-se um crítico do pedantismo gramatical e do sadismo pedagógico que permaneciam nas escolas. Criticava o ambiente sujo e barulhento, bem como a inconsistente verbosidade do ensino. Para o autor que sistematizou as regras de civilidade do século XVI, a educação do cidadão, do gentil-homem e do governante tinha uma função civil. Como nos conta Monacorda (1996): Eles ampliam o próprio quadro de atenção das palavras às coisas, do mundo antigo à atualidade, ou, como diz Machiavelli, da “contínua lição dos antigos” à observação da realidade efetiva”, e interferem autorizadamente junto ao poder político para sugerir uma nova e diferente organização da cultura e da instrução (p.185). Tornando-se forte e bem recebida, em diferentes espaços europeus, a concepção humanista de educação entra na intrincada rede de discussão sobre o que deveria ou não deveria ser a educação na nova sociedade que se anunciava. A igreja Católica, por exemplo, chegou a considerar o estudo do grego uma heresia e se chocou com posições como a de Leonardo da Vinci, que propunha uma formação dos homens e uma cultura voltadas para as artes produtivas, para a prática. Assim, alguns criticavam o “tempo” gasto com os estudos liberais, pois os consideravam dispensáveis para a dinâmica de comércio e de produção. Outros não consideravam as artes produtivas como estudo, por não identificarem nestas os conhecimentos que aperfeiçoariam o espírito; havia, ainda, aqueles que criticavam as disciplinas teóricas, porque estas se ocupavam apenas com os conhecimentos do espírito e da mente, nada produzindo de concreto. Manacorda(1996) nos apresenta, no diálogo imaginário do tanoeiro Gelli com sua alma, a expressão do que acontecia na época e que, ainda hoje podemos identificar nos cursos superiores procurados por pessoas já inseridas no mundo do trabalho; em geral, ocorre com as licenciaturas. A alma aconselha o tanoeiro a dedicar-e aos estudos das ciências sem “perturbar seus afazeres”, isto é, continuando a ser tanoeiro, mas culto. Ele argumenta: Não é mais fácil fabricar dornas do que estudar as letras, e Gelli deplora fortemente “o medo que fazem os doutos, tal que afasta do
  • 24. estudo”, “ a inveja maldita dos doutos” que “fazem de tudo para dissuadir os homens dos estudos” (p.189). Fazendo uma crítica ao uso do latim como língua culta e á imagem do trabalho como penitência, Gelli buscou a produção de si como trabalhador culto, uma cultura voltada para a prática. Ele identificava na cultura dos doutos uma arte de dominar e dissuadir o povo do estudo, como um “bem” que deve permanecer entre os iguais. Vão se inscrevendo novas formas de se mover no espaço/tempo que se organiza. A elite, além de se impor os códigos de civilidade e a eles se submeter, inicia a produção de um maquinário cultural que se estende para além de suas fronteiras de classe ou de pertença cultural. Como ação ou como reação, aquilo que faz parte desta elite vai assumindo a força de verdade. A noção de medida interna dos gregos, por exemplo, que não podia ser expressa em termos quantitativos, mas em sua relação com a beleza, saúde e harmonia do próprio objeto ou pessoa será, reapropriada por uma quantificação exata de tudo o que seja possível. É importante destacar que nos séculos XV a XVII, as fissuras nas imagens- memórias da Idade Média não significaram ruptura ad-aeternum, e nem para todos. Para algumas pessoas as mudanças que estavam ocorrendo não faziam sentido ou sequer eram percebidas, para outras eram heresias, e outros as ressignificavam, tensionando ainda mais o processo e produzindo novas rupturas. No final do século XV, portugueses e espanhóis lançaram-se em mares nunca antes navegados. Desterritorializados, traçaram linhas de fuga em busca de novas tramas que pudessem manter a dinâmica comercial interna da Europa. Assim, são buscadas novas rotas para o comércio, produtos comercializáveis, ouro e prata – para a cunhagem de moedas. O mundo conhecido, pelos europeus, que era a Ásia, África e Europa, se expandiu. Em Portugal, D. Henrique, filho de D. João I, organizou na Vila de Sagres um centro de pesquisa de navegação. Na Espanha, após a expulsão dos mouros, em 1492, os reis Fernando e Isabel patrocinaram a viagem idealizada por Colombo, que, contestando o paradigma científico/religioso da época, afirmava ser a Terra redonda e, portanto, passível de ser circunavegada.
  • 25. A igreja, sem a força unificadora de outrora, mantinha-se a partir de sua forte aliança com a nobreza. Contudo, a dinâmica de vida nas cidades, a produção de novos conhecimentos e a autonomia que alguns setores da sociedade vão adquirindo colocam em cheque não apenas o controle que essa ainda mantinha sobre a produção e a aceitação dos conhecimentos como, e especialmente, seu poder para isso. O barateamento para a produção de bíblias e outros livros possibilitou, aos que sabiam ler em latim, o acesso às “verdades divinas” sem a necessária interpretação dos padres. Essa vontade de saber, que é também uma vontade de poder, aliada ao espírito de individualização, aos descontentamentos com o comportamento do clero romano e ás questões políticas e econômicas específicas dos diferentes espaços da geografia européia, produziu quebras na unidade interna da Igreja Cristã. O conjunto dessas fissuras foi denominado “Reforma” e os homens que dele participaram foram designados como protestantes. Apesar de não haver uma linha única de atuação, os movimentos de protesto surgiram mais ou menos entrelaçados, questionando a obrigatória interpretação da Bíblia por um clérigo sábio, a realização de missas em latim para uma população que, em geral, só falava a língua local, a concentração de riquezas e de terras da Igreja, a condenação que esta fazia ao lucro excessivo e até a indissolubilidade do casamento. Esses protestantes apareceram na Inglaterra, Suíça, Alemanha e França. São em sua maioria religiosos de origem cristã18. Entre os protestantes, está Lutero27 que, na Alemanha, propõe a organização de um sistema escolar destinado ao trabalho. Para ele a instrução deveria ser dada a meninos e meninas, pois seu objetivo era formar homens e mulheres atuantes sociais.Manacorda (1996) nos conta que ele, buscando inspiração na escola da Antiguidade,criou um projeto de educação para as classes destinadas à produção e propôs para isso um processo ativo, no qual se articulariam instrução e trabalho. A Reforma na Alemanha exprimiu, sobretudo, exigência populares, embora não estivessem ausentes atitudes aristocráticas. Assim, embora não tenha havido uma ruptura na concepção dicotômica entre trabalho intelectual e manual, fortemente presente na educação dos países Ibéricos, da França e da Itália, as classes destinadas à produção são consideradas não mais como os principais destinatários da catequese cristã, mas também como participantes ativos no processo comum da instrução (p.198).
  • 26. Criticando a escola tradicional e a atitude humanista, Lutero colocou o acento de seu projeto de escola na utilidade social da instrução, destinada a formar homens capazes de dirigir o Estado e mulheres capazes de dirigir a casa (Manacorda, 1996:197). Ele não falava apenas para a classe: dirigente, falava também para os pais,estimulando-os a mandarem seus filhos à escola. Tentou conciliar o respeito pelo trabalho manual produtivo com o tradicional prestígio do trabalho intelectual. Manacorda (1996), citando Lutero, nos possibilita identificar, até mesmo, uma ressignificação do corpo feita pelo protestante: Os trabalhadores manuais são inclinados a desprezar os trabalhadores da mente, como os escrivães municipais ou os mestres de escola. O soldado gaba-se das dificuldades de cavalgar com a armadura, suportando o calor, o gelo, a poeira, a sede; mas eu gostaria de ver um cavaleiro capaz de ficar sentado o dia inteiro com o nariz fincado num livro... O escrever não empenha somente a mão ou o pé, deixando livre o resto do corpo para contar u brincar, mas empenha o homem inteiro. Quanto ao ensinar, é um trabalho tão cansativo que ninguém deveria ser obrigado a exerce-lo por mais de dez anos. (p.198) Ele identifica no trabalho do a produção de riquezas. Identifica que, nas técnicas corporais, nas formas de fazer, há uma produção importante para a Alemanha e, de certa maneira, que o corpo é o “instrumento” para o fazer humano.Assim, articulando os conhecimentos dos mestres artífices e os da educação clássica, procura a produção de uma outra imagem de educação. O alemão Melanchton, em 1526, afirma que uma cidade bem ordenada precisa de escolas, onde as crianças, que são o viveiro da cidade, sejam instruídas (Manacorda, 1996:198) 27 Lutero
  • 27. “Lutero, ao criticar o modelo tradicional de ensino da Igreja, idealizou uma escola que em três anos realizasse um programa educativo equivalente ao que se levava uma vida inteira para completar e defendeu a utilidade social da educação a fim de formar homens capazes de governar. Aos conselheiros de todas as cidades da nação alemã, para que instituam e mantenham escolas cristãs: ... Caros Senhores, cada ano gasta-se tanto em espingardas, estradas, caminhos, diques, e tantas outras coisas desse tipo , para dar a uma cidade paz e conforto; mas por que não se investe muito mais, ou pelo menos para a juventude pobre e necessitada, de modo que possam surgir entre eles um ou dois homens capazes, que se tornem mestres de escola? Não é talvez, evidente que hoje um rapaz pode ser instruído em três anos, de tal modo que aos quinze ou dezoito anos ele saiba muito mais do que quanto se saiba quando existiam tantas escolas superiores e tantos conventos? E assim é: o que se aprendia até agora nas escolas superiores e nos conventos a não ser tornar-se uns burros, patetas e cabeçudos? Estudava-se vinte, quarenta anos e não se aprendia nem o latim e nem o alemão... MARTINHO LUTERO Para Lutero, a educação deveria se libertar da Igreja e ser exclusiva do Estado, assim ela poderia atingir a todas as pessoas, ricos e pobres, homens e mulheres, e o Estado poderia obrigar a todos a freqüentar a escola. Apesar de propagar uma “educação para todos”, a educação luterana não deixava de ser elitista, pois pregava um tipo de educação para os trabalhadores mais simples e uma outra destinada à classe privilegiada com condições de ascensão ao ensino superior. Os movimentos protestantes promoveram a difusão da instrução a fim de que cada um pudesse ler e interpretar pessoalmente a Bíblia, sem a influência do clero”. ( CND. Iesde.2002:263) ______________ 18 Esses protestantes são: Na Inglaterra , Henrique VII, que, em 1534, é reconhecido pelo parlamento inglês como chefe religioso supremo da Igreja Anglicana. Contudo, somente no governo de Elisabeth I (1558-1603) é que se consolida a Igreja Anglicana; o francês João Calvino(1509-1564) que encontra, no movimento iniciado por Ulrich Zwinglio(1484-1531), na Suíça, o caminho para que sua concepção protestante seja apoiada pela burguesia mercantil local; o monge agostiniano Martinho Lutero (1485-1596) e Filipi Melonchtom (morreu em 1560) que, na Alemanha, propõem uma educação baseada em princípios bem diferentes dos hegemônicos no restante da Europa. Aparece neste século, e na Alemanha, mais explicitamente a idéia de formar para ser governante independentemente de uma linha sucessória. Há mais uma fissura
  • 28. na imagem de educação propagada pela Igreja e hegemônica na Europa. O Estado é instigado a assumir a formação da população; as ações do protestantes, no sentido de formar governantes e trabalhadores distantes das ordens religiosos católicas, provocam mais uma reação da Igreja que, como nos conta Manacorda (1996), reagrupa suas forças para manter o monopólio do clero nas questões da educação, de sua influência nas questões dos Estados, enfim, da força política de suas imagens-memórias e de suas prerrogativas de saber e poder. Nesta busca por manter-se no controle dos saberes, ela acaba desenvolvendo argumentos no sentido de condenar as iniciativas alheias à extensão da instrução às classes populares como toda inovação cultural(p.200). O concílio de Trento (1545 –1564) marca a reação da Igreja às várias transformações que ocorriam na sociedade e, especialmente, no campo da educação e da cultura. Há uma crítica à invenção da imprensa e nasce uma idéia de que já existiam livros demais. Várias espécies de livros foram condenadas, entre elas, as de autores como Lutero, Calvino, Zwínglio e outros considerados hereges. Houve também proibições de assuntos como geomancia, piromancia, onomancia, quiromancia ou aqueles relativos a adivinhações, sortilégios e magias. O concílio também tomou iniciativas de reforma educacional e, evocando antigas tradições, não só propôs a reorganização dos conteúdos escolares, mas hierarquizou-os, implantou e produziu forte hierarquia das relações internas nas escolas. A ignorância da maior parte do clero e a precariedade da formação de alguns de seus professores levaram a dois movimentos: ao maior rigor na seleção dos jovens para ingressarem nas suas fileiras, que passaram a ter de, além de serem filhos de matrimônio legítimo, saber ler e escrever em latim; e a organização de um fluxo de estudos para aqueles que desejavam se tornar professores. Á parte os seminários para a formação do clero, o exemplo mais bem-sucedido de novas escolas para leigos, recomendado pelo Concílio de Trento foi o das escolas dos jesuítas, campeões máximas na luta da Igreja Católica contra o protestantismo (Manacorda, 1996:202) Dedicados à formação dos dirigentes da sociedade européia, no final do séc. XVI, os jesuítas publicaram a Ratio Studiorum, que regulamentou rigorosamente o sistema escolástico jesuítico e organizou o ensino em classes, horários, programas e
  • 29. disciplinas. Os jesuítas captaram, desta época, uma forte tendência que Descartes expressaria posteriormente. Os séculos XVI e XVII foram palco de rupturas nos diferentes campos do conhecimento e da vida, sendo dispensável aos estudiosos da complexidade destacar se foi esse ou aquele aspecto, essa ou aquela ação que produziram uma ruptura, pois não houve um ponto onde possamos dizer foi aqui que começou. O que podemos apontar são alguns nós, nos quais o olhar arguto de algumas pessoas captou o movimento, e as sínteses das vivências de mundo foram produzidas e compartilhadas. Uma destas pessoas com capacidade de síntese de sua época, foi René Descartes19(1596 –1650). Considerado por muitos autores como o fundador da Filosofia moderna, buscou a elaboração de um método que permitisse a unificação de todo o saber. A certeza que Descartes procurava. devia ser absoluta e contar com um fundamento indubitável. Deste modo, a filosofia cartesiana instaurou um modo especifico de relação do ser humano como sujeito e o mundo como objeto que já havia começado a desenvolver-se no Renascimento. (Najamanovich, 2001:67) Em suma, o ser Humano é aquilo que pensa, acredita, mentaliza, atraindo para si coisas boas ou ruins, conforme o que tenha pensado, acreditado, mentalizado. Não queremos dizer que haja predestinação para uma determinada experiência ou situação. O destino quem faz é o ser humano, de acordo com o modo e a forma de seus pensamentos. Tudo está relacionado, quando se tem a pretensão de entender paracientificamente todo o processo. _____________ 19 René Descartes nasceu em la Haye(Touraine). Sua juventude nada tem de particular. Fez estudos no colégio dos Jesuítas de La Fléche, uma das melhores e mais célebre escolas de sua época. Em 1616 licenciou-se em Direito em Poitiers. Oficial na Holanda, sob o comando de Maurício de Nassau, encontra tempo para escrever um Traité de Musique (1618), onde explica a Música por um cálculo de proporções. A noite de 10 de novembro de 1619 é decisiva na vida de Descartes. Ele estava em seu quarto aquecido naquela entrada rigorosa do inverno da Baviera, entretido em suas meditações, quando descobriu, entusiasmo, um método universal para a pesquisa da verdade. Fez então um voto de peregrinação em Notre-Dame-de-Lorette. Prosseguiu em suas viagens através da Alemanha e Holanda, voltou para à França, tornou a partir para a Suíça e Itália. Retornando `a França,fixou-se em Paris (1625-1629), entregando-se a vida mundana. Existem duas formas de você conseguir esse entendimento. A primeira, a nível filosófico; a outra, a nível cientifico. Entre as duas, preferimos a segunda, porque ao compreender como funciona na realidade, fica mais fácil para você assimilar, favorecendo um controle bem maior no exercício de mentalização positiva, de forma técnica, e não de modo apenas intuitivo ou filosófico. O ideal é conciliar os dois níveis, facilitar a evolução.( Fausto Oliveira, Meu anjo,1996)
  • 30. Instalando um modo especifico cartesiana se introduz na vida com sua noção de sujeito racional, capaz de conhecer e de elaborar imagens ou representações do outro, que é diferente de si. Para alguns autores ele é, também, o pai da dicotomia entre corpo e mente, mas Najmanovich (2001), assim como Morais (1992) e Fontanella (1995), reconhece que antes da Modernidade já havia uma concepção dualista de homem que distinguia o corpo da mente. Peter Brown (1990) nos relata que na sociedade ocidental esta dicotomia aparecerá, marcadamente, a partir do primeiro século depois de Cristo, através do pensamento do apóstolo Paulo. O autor afirma que: a guerra do espírito contra a carne e da carne contra o espírito foi uma imagem desesperada da resistência humana à vontade de Deus (p.50). Esta dicotomia, entanto, não tinha a marca de uma imagem maquinizada do corpo, nem este era esvaziado de sentido para a existência como o será na produção de Descartes. Foi rompida a ligação do corpo com o mundo: a corporeidade foi dilacerada. A nova imagem de homem que estava nascendo foi sintetizada por Descartes: Um de seus enunciados afirma: Se duvido, penso. A sua afirmativa mais famosa ( Penso, logo existo) nos leva a O pensamento cartesiano entendia que quando a verdade não era evidente era preciso desenvolver métodos de traze-la à tona. Os métodos propostos foram os seguintes: análise, síntese, enumeração. Penso, logo existo. Entretanto, ao se dar conta de ter parido um homem pensante, percebe que lhe fica muito difícil atribuir entidade ao mundo que percebe. Assim, ele pode a colaboração de Deus que não criaria uma criatura inteligente para engana-la sempre (Najmanovich, 2001,19-20). O agir e o sentir foram subjugados à razão, como podemos identificar na passagem exemplificativa abaixo. Deus, examinando com atenção o que eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar, em duvidar da verdade das outras coisas seguia-se, mui evidente e mui certamente, que eu existia; ao passo que, se apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria qualquer razão de crer que eu
  • 31. tivesse existido; compreendi por ai que era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é. (Descartes, 1996:92) Em suma, o ser Humano é aquilo que pensa, acredita, mentaliza, atraindo para si coisas boas ou ruins, conforme o que tenha pensado, acreditado, mentalizado. Não queremos dizer que haja predestinação para uma determinada experiência ou situação. O destino quem faz é o ser humano, de acordo com o modo e a forma de seus pensamentos. Tudo está relacionado, quando se tem a pretensão de entender paracientificamente todo o processo. Existem duas formas de você conseguir esse entendimento. A primeira, a nível filosófico; a outra, a nível cientifico. Entre as duas, preferimos a segunda, porque ao compreender como funciona na realidade, fica mais fácil para você assimilar, favorecendo um controle bem maior no exercício de mentalização positiva, de forma técnica, e não de modo apenas intuitivo ou filosófico. O ideal é conciliar os dois níveis, facilitar a evolução. ( Fausto Oliveira, Meu anjo,1996) A vivência corporal foi compreendida por ele como uma representação na mente e os objetos do mundo exterior como meros dados da consciência. Para ele existiam aqueles que racionavam, “pensavam” e sabiam da sua existência e os que existiam por si, e confirmada por Fausto de Oliveira, um parapsicólogo e autor do livro “Meu Anjo” tudo sobre regressão de memória em busca de sua alma gêmea. Ele via os seres humanos como sendo habitados por uma alma racional que estava ligada ao corpo através da glândula pineal, no centro do cérebro(Capra, 1999:56). Ressignificando e levando às últimas conseqüências a distinção entre resextensa (extensão, corpo, matéria) e res cogitans ( pensamento, consciência racional), ele prendeu o Eu no cogito (razão), contribuindo para a geração de uma lógica filosófica em que a imagem-memória do Eu se fixou como a da razão. Profundamente influenciado pelo pensamento barroco do século XVII, que via as máquinas e as engenhocas como que dotadas de vida própria, encantando as pessoas com a magia de seus movimentos Descartes explicou em detalhes as semelhanças dos movimentos e das várias funções biológicas do corpo com os mecanismos. Na sua busca por construir uma ciência natural completa, englobou os organismos em sua concepção mecanicista de matéria e as imagens dos seres vivos foram assimiladas às de
  • 32. máquinas. Sant’Anna (1996) nos conta que o velho sonho de criar vida foi atualizado com a fabricação dos autômatos, em particular aqueles de Vaucanson no Século das Luzes, inventor, entre outros, de um andróide tocador de flauta e de um pato que come, bebe e faz a digestão tal qual um pato vivo. (p.250). Descartes era fascinado por esses mecanismos, chegando a produzir alguns e a afirmar que não via diferença entre eles e os produzidos pela natureza. Najmanovich(2001) nos aponta Descartes como o produtor de uma trilogia fundamental que caracteriza a “maquinização” da imagem de mundo, de corpo e de conhecimento: a fundamentação metódico-maquínica, a distinção radial corpo-mente e a geometria analítica (p.19). Esta última contribuiu para que o olhar para o espaço se transforme em um olhar esquadrinhador, procurando fixar o lugar das coisas e das pessoas. Inferiorizado em relação ao pensamento, o corpo precisava ser domado, não pela fé em Deus, mas pela razão. Visto como máquina, no momento em que começa a se organizar uma economia capitalista, o corpo é assumido como mais um instrumento na produção; porém um instrumento que deve ser controlado, moldado, adaptado aos novos tempos. Uma forma científica se apossa do corpo e combina ordenação, precisão terminológica, hierarquia e razão matemática. É o corpo máquina que fará parte da produção e se distinguirá do Eu. O homem do mundo burguês passa a ter um corpo. A prática do registro escrito assumiu um papel quase místico perante a regulamentação necessária ás novas relações e a importância de compreender o mundo de forma racional. Passou a ser necessário anotar o que se via, o que se pensava, o que se queria fazer... A memória ganhou relevância e o mundo não podia mais ser narrado pela boca do povo, mas por aqueles que “sabiam” como o “mundo realmente era”. A idéia de progresso foi se impondo, sob formas científicas, eruditas, tecnológicas e políticas, invadiu o mundo vivido e se apossou dos corpos, dos sentidos e dos agires. O conhecimento passou a ter um valor aplicativo e a identidade do homem moderno foi sendo tecida pelo seu potencial de produção e capacidade de registro do que estava sendo feito, demandando uma iniciativa interminável, diante das necessidades e das propostas da nova ordem que se instalava.
  • 33. Foram alterados, no Ocidente, hábitos cotidianos, as relações de poder e as relações de produção material e do conhecimento. O acordar e o dormir não mais se regulariam pela dinâmica das estações do ano ou pela dinâmica de cada grupamento social. Agora o relógio e a demanda da produção começam a dar um novo ritmo ao mundo vivido. A refeição, por exemplo, não seria mais saboreada no momento em que ficava pronta, em festividades, freqüentadas por todo o tipo de gente, ou quando o corpo dela necessitava; tornou-se necessário consumi-la em horários previstos. As necessidades e os desejos humanos precisavam ser controlados para atender as exigências das novas maneiras de produção e da nova forma de vida das cidades. As pequenas oficinas vão sendo substituídas pelo trabalho nas fábricas e as ferramentas simples dos artesões, pelas novas máquinas. Uma nova classe se incorpora à cultura de elite.São os donos das fábricas e dos bancos. Tinham dinheiro e os meios de produção. Alguns desejavam ter também os maneirismos e os saberes da aristocracia. Na França, a aristocracia perde poder econômico, mas se alia aos burgueses; há um escambo cultural- econômico. A crença de que o ser humano seria capaz de conhecer tudo o que existia no mundo e que era perceptível aos sentidos e encampado pela experimentação levou à criação da Enciclopéida26 – ou Dicionário Racional das Ciências, das Artes e Ofício -, que deveria conter todo conhecimento humano. A Enciclopédia francesa foi a ampliação de uma enciclopédia inglesa, publicada em 1728, e sua elaboração foi coordenada pelo escritor Denis Diderot (1713 –1784), que contou com várias dezenas de colaboradores. O principal colaborador de Diderot foi o matemático Jean Le Rond D’Alembert (1717 –1783), mas outros expoentes do Iluminismo, como Voltaire, Monteisquieu e Rousseau, também contribuíram para a produção dos textos que formam a Enciclopédia. A obra completa contém 35 volumes, nos quais é feita uma revisão crítica das artes e das ciências sob o prima do Humanismo e do Racionalismo. O objetivo dos enciclopedistas era divulgar suas teses filosóficas e as descobertas científicas.
  • 34. 28 Enciclopedia das artes e ofícios. Para a maioria da população pobre, e também para os camponeses, o corpo manterá sua conexão com a natureza, subordinado aos costumes comunitários. As crianças, que aprendiam sobre o mundo, a partir das experiências cotidianas, na convivência com os adultos, no espaço comunitário, serão mandadas à escola, para aprender as novas maneiras de ser, próprias da civilização moderna. Com já dissemos, no plural, porque o digo a partir da fala de vários outros autores, o corpo medieval não tinha nada a ver com aquele urdido pela modernidade, não era um corpo contido, a boca era escancarada, o apetite, voraz, os excrementos eram considerados elo essencial da cadeia da vida e da morte, uma ramificação do corpo, ultrapassando os próprios limites e sendo fundido com o mundo. Não havia fora dos mosteiros uma moralidade especifica de controle da corporeidade. As partes do corpo tinham nomes que lhes eram dados sem rodeios ou refinamentos. A construção do Renascimento transformou a consciência cosmológica em uma auto-consciência e colocou o homem como centro do mundo; todavia, as produções de Descartes, dos iluministas e a “inauguração” da sociedade da produção, da ciência e da técnica inventarão um homem que pensa, se pensa e pensa outros homens isoladamente. Acreditando que apenas a razão seria capaz de produzir a verdade. Esta razão, que só poderia aflorar com o homem livre de todas as influências, com o pensador autônomo, universalmente desprendido, como sujeito descorporificado, fora do mundo que o produziu homem, gerou, além de uma objetificação do sujeito, uma pretensa neutralidade na produção dos saberes científicos. A imagem-memória maquínica será impressa na corporeidade moderna. Esta passará a fazer parte das nossas analogias para interpretar os sujeitos, os espaços, a
  • 35. natureza, as cidades, a educação e o próprio mundo vivido. A imagem-memória maquínica sugere uma hierarquia e uma mecânica na qual o trabalho das partes é essencial para o funcionamento do todo, porém, sem identificar que parte e todo estão interconectados em uma trama, que o uno e o múltiplo estão presentes um no outro. Essas imagens se multiplicaram e, posteriormente, as técnicas taylorizadas, a medicina social, a escola, as técnicas de higiene, os cuidados de si, a lógica empresarial e a mídia, estas já no início do século XX, tentarão transformar os indivíduos em impressos da ordem. A “verdade” passou a ser produzida pelo trabalho histórico, político e econômico, sendo dependente de um querer-fazer o progresso desejado pelos setores dominantes. Conhecer deixou também de significar uma aproximação com Deus. O saber se entrançou com a produção de coisas materiais e com a ordenação do mundo. O trabalho com as mãos, que, na maioria dos países europeus, inclusive e especialmente em Portugal, não era considerado como algo de valor, recebeu um outro tratamento a partir da racionalidade maquínica e, segundo Sant’Anna (1996), a burguesia industrial encontra uma justificativa laica e funcional para o trabalho dos homens. O corpo torna- se uma máquina funcional e rentável, um mecanismo que deveria saber transmitir e transformar movimentos em produção. Os lugares fundados e a idéia de vida comunitária perdem a força e uma nova cultura vai sendo tramado por esse novo homem que produz e se produz na ambigüidade dos desejos de se corporificar e da descorporificação produzida pela razão dominante. 2.3- Coser a ponto largo, como preparo de costura A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de <<quadros vivos>> que transformam a multidões confusas, inúteis ou perigosas em multidões organizadas. A constituição de <<quadros>> foi um dos grandes problemas da tecnologia científica, política e econômica do século XVIII; arrumar jardins de plantas e de animais, e construir ao mesmo tempo classificações racionais dos seres vivos; observar, controlar, regularizar a circulação das mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro econômico que possa valer como princípio de enriquecimento; inspecionar os homens, constatar sua presença e sua ausência, e constituir um registro geral e permanente das forças armadas; repartir os doentes, dividir com
  • 36. cuidado o espaço hospitalar e fazer uma classificação sistemática das doenças: outras tantas operações conjuntas em que os dois constituintes – distribuição e análise, controle e inteligibilidade – são solidários. O quadro do século XVIII é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber. ( Foucault, 1987:135) A partir do século XVIII, uma visão de mundo e de conhecimento vai dominar a cultura da elite e tornar-se hegemônica nos vários espaços europeus. A população deveria ser educada dentro dos novos moldes; aquelas corporeidades que traziam impressos muitos traços da cultura medieval eram antitéticas às novas formas de produção de riquezas e de conhecimentos. Vão sendo gerados novos conhecimentos e os que dominarão o cenário europeu serão aqueles articulados ao mundo da produção e à organização da população em torno da produção industrial, embora a estruturação da vida se altere não apenas pela alteração da forma de organização econômica. Toda uma rede de saberes,dos vários tempos históricos e de memórias, vai interagir nos fazeres corporais da sociedade, mas uma forma vai se tornar dominante. A burguesia francesa, a inglesa a espanhola e a portuguesa, enredadas à nobreza, à intelectualidade e, ao contraditoriamente, ao clero, dominarão o panorama político- cultural. Apropriando-se da racionalidade organizativa da Igreja e de certos maneirismos da nobreza, mas inserindo-se no fazer certas práticas corporais engendradas pela racionalidade que toma a competição, o individualismo, a velocidade e a ordenação como elementos próprios de sua constituição, a burguesia se compreende como superior a todas as classes. Ela se coloca como a inauguradora de um novo tempo, de uma nova forma de vive e produz políticas que marcarão no corpo moderno as imagens-memórias que ainda hoje fazem muitos de nós crermos ser esta a melhor, e única forma possível, de viver no mundo contemporâneo. A imagem-memória do homem moderno vai se fixar dual. Ela é a de uma cabeça que pensa, ou que deveria pensar, e de um corpo que precisa ser dominado pela razão. Não há corporeidade, mas um indivíduo, isolado dos demais, que se responsabiliza pelo seu sucesso e pelo seu fracasso no mundo da produção. Por ter um corpo, o homem moderno deve ser capaz de domina-lo para chegar ao sucesso. As várias ciências que nascem no século XVIII vão produzir leituras sobre este homem, cada uma nos limites de suas barreiras disciplinares e a imagem-memória de corpo que dominará será a do corpo máquina, mais um mecanismo da racionalidade capitalística.
  • 37. Manacorda (1996) nos conta que o modo de produzir os bens materiais necessários à sociedade transformou-se profundamente. Do domínio da forma artesanal individual de produção(ou de pequenos grupos de iguais) transmuta-se para as oficinas associadas às respectivas corporações de artes e ofícios. Deste passa-se a uma fase de iniciativa do mercador capitalista que, esquivando-se às corporações, destina a matéria- prima e o processo produtivo a indivíduos dispersos e não-associados, mas contratados por ele (p.270). Logo a seguir, identifica-se o aparecimento da cooperação simples, onde, sob novas relações de propriedade e concentrados em uma só oficina,reúnem-se os artesões, antes dispersos. Porém, o modo de trabalhar permanece essencialmente o mesmo. Em um momento posterior, da cooperação simples passa-se para a manufatura, com a qual se efetua uma primeira divisão do trabalho, ou melhor, de rotina operativa, dentro de cada setor de produção e de cada estabelecimento, através do qual cada trabalhador realiza sua “arte”. Por último, devido à crescente intervenção da ciência com força produtiva, passa-se ao sistema da fábrica e da indústria baseada nas máquinas, em que a força produtiva não é mais dada pelo homem, mas pela água dos rios,primeiro, e pelo carvão mineral, em seguida; e a máquina realiza as operações do homem, já reduzido a um simples acessório da máquina. (Manacorda, 1996:270) O processo de transformação das formas de produção se imbrica com os processos de transformação da cultura, com a produção de conhecimento e com o que se torna ou deixa de ser considerado como conhecimento. Manacorda nos lembra que o aprendizado que passa de mestre para aprendiz, de pai para filho, que estava presente na sociedade ocidental desde o antigo Egito, conforme atesta Platão, e que se constituiu no conhecimento dos trabalhadores artesanais da Idade Média transformou-se em um não- saber. O saber para a produção deslocou-se do grupo de artesões que dominavam a técnica para a “moderníssima ciência da tecnologia”. Os homens e as mulheres comuns tornam-se ignorantes por já não terem os conhecimentos de todo o processo produtivo. Com o renascimento e com o Humanismo, houve um deslocamento do foco dos conhecimentos. Saber tornou-se uma ação de todos os homens, todos, com sua capacidade mental poderiam conhecer o mundo, as formas do mundo e transformar o mundo. Contudo, com as mudanças na forma de organização do trabalho, na produção cientifica e tecnológica, os homens e as mulheres comuns passaram a ser identificados
  • 38. como não-sabedores, pois o saber, que havia sido libertado dos muros dos mosteiros, tornou-se enclausurado pela racionalidade maquínica que passará a dominar a imagem- memória de mundo no século XVIII. Conhecer tornou-se maquinar, mas não eram todos que podiam maquinar; era preciso ser aceito na ordem do discurso. Tornou-se indispensável passar pelos rituais de iniciação e de aceitação produzidos nos espaços de poder de uma ciência positiva. O homem e a mulher comuns já não eram sabedores, suas mentes estavam repletas de imagens-memórias que não correspondiam à realidade do mundo. Além disso, eles não conheciam as regras, as maneiras de se comportar com disciplina, não sabiam sequer usar de forma correta os mecanismo que estavam sendo produzidos a serviço de uma elite que busca, na produtividade, a marca de uma nova época para a civilização humana. Foucault (1992) nos conta que, no campo da produção de conhecimentos científicos, a comparação realizada pela medida assumiu um papel preponderante, reduzindo a observação do mundo em relações aritméticas de igualdade e de desigualdade. O semelhante, que foi durante muito tempo categoria fundamental do saber, foi dissociado numa análise feita em termos de identidade e de diferença. Dois caracteres essenciais passaram a dominar. O primeiro, o das relações entre os seres humanos, que foram realmente pensados sob a forma da ordem e da medida, e que tiveram como desequilíbrio fundamental o de se poder sempre reduzir os problemas da medida aos da ordem. O segundo referiu-se ao aparecimento de uma série de domínios empíricos, que até então não tinham sido nem formados nem definidos, que se constituíram tendo por base uma ciência da ordem. A colocação em ordem, por meio dos signos, passou a constituir todos os saberes da identidade e da diferença. Se, no século XVI, a semelhança estava ligada a um sistema de signos e era sua interpretação que abria o campo dos conhecimentos concretos, a partir dos século XVII, a semelhança é repelida para os confins do saber, do lado de suas mais baixas e mais humildes fronteiras. Lá, ela se liga à imaginação,às repetições incertas, às analogias nebulosas (Foucault, 1992:86). Para o projeto de ciência geral da ordem, ou teoria da disposição em quadros ordenados das identidades e das diferenças, devia-se, a um tempo, designar muito precisamente todos os seres naturais e situá-los ao mesmo tempo num sistema de identidades e de diferenças que os
  • 39. aproxima e os distingue dos outros. A história natural deve assegurar, num só movimento, uma designação certa a uma derivação controlada (p.153). Essa concepção de ciência se entrelaçou com a necessidade de organização da vida nas cidades, que se estenderam para além dos limites de seus muros, e da população, que perdeu os contornos definidos. Participavam da feira pessoas de várias localidades, algumas iam ficando, outras chegando e outras partindo sem nem mesmo terem sido vistas por membros da elite local. Já trafegavam nas primeiras ruas modernas alguns veículos particulares, e seus passageiros, isolados, desejavam, inicialmente, um distanciamento daquela realidade anárquica da cidade. Como o anárquico se torna um panorama comum e antagônico aos anseios da classe que assume a liderança política e cultural da sociedade, algumas tecnologias serão produzidas no sentido de disciplinar a multidão nos diferentes espaços da sociedade que estava sendo criada. Era preciso ter uma imagem objetiva da população, colocando cada coisa em seu lugar e dando nome às coisas. A ciência e a filosofia também produzem uma imagem-memória de si, que possibilita saber onde cada coisa está. Assim, Marilena Chauí(1994,p.17), partindo sobretudo do pensamento para que filosofia? “A filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas a interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e na compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento da ação humana, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento das mudanças das formas do real ou dos seres; a Filosofia sabe que está na História e que tem uma história.(Chauí, 1994) A autora nos fala da filosofia, que somente se realiza pela reflexão. Diante do processo de reflexão, o homem percebe-se como um ser de transcendência. Enfim, a transcendência é mesmo possível? Estamos convencidos de que sim. Portanto, ao perceber-se como um ser livre, o homem passa também a entender que pode mudar as condições materiais em que está inserido, se assim desejar. Ao fazer isso, ele altera não apenas as suas relações com a natureza, mas, a sua própria relação
  • 40. com os demais atores sociais. Desse modo, a transcendência significa que podemos historicamente alterar as condições em que fomos formados. Ao termos consciência de que podemos mudar tais condições, percebemos que dias melhores virão, se assim desejarmos. É por esta razão que se justifica, mais uma vez, a importância da Filosofia em nosso cotidiano como educadores: ela impede a estagnação e dá sentido à experiência. Por exemplo: será que eu, diante do meu fazer pedagógico, posso contribuir para que a transcendência possa ocorrer com meu aluno? Será que eu posso contribuir para que as crianças cresçam de forma autônoma?”(Aldry, artigo para o Jornal “EntreRios”, 4.06.05) Em aula, quando abordamos a diferença entre o conhecimento filosófico e o senso comum, procuramos fazer distinção à luz do pensamento de Platão. Muito embora ele tenha estabelecido vários níveis de compreensão da realidade, destacamos os dois principais: a doxa e a episteme. Um ator social que vive no âmbito da doxa (opinião)é alguém que localiza sua existência apenas no senso comum. Pensar os problemas a partir da episteme (ciência) é pensá-los à luz da filosofia. Essa expressão designa a capacidade de olharmos para os fenômenos de maneira sistematizada. Uma reflexão somente é sistemática se for rigorosa, radical e de conjunto. Para explicar a importância desses conceitos dentro do processo do filosofar, valêmo-nos do comentário realizado por Maria Lúcia de Arruda Aranha.(2002). A filosofia é radical porque vai até as raízes da questão. A palavra latina radix, radicis significa literalmente “raiz” e, no sentido derivado, “fundamento”, “base”. Portanto, a filosofia é radical é rigorosa porque, enquanto a Filosofia de vida não leva suas conclusões até as ultimas conseqüências, o filósofo especialista dispõe de um método claramente explicitado, que permite proceder com rigor, garantindo a coerência e o exercício da critica. Para justificar suas afirmações com argumentos, faz uso de uma linguagem rigorosa, que permite definir claramente os conceitos, evitando a ambigüidade típica das expressões cotidianas. Para conseguir essa linguagem o filósofo inventa conceitos, cria expressões novas ou altera e especifica o sentido de palavras usuais. A filosofia desenvolve uma reflexão de conjunto porque é globalizante, examina os problemas sob a perspectiva do todo, relacionando os diversos aspectos. Enquanto as ciências examinam “recortes da realidade, a filosofia além de poder examinar tudo(porque nada escapa ao seu interesse) também visa o todo, a totalidade. (Aranha, 2002, p.107)
  • 41. Desse modo, ousamos a afirmar que toda forma de analfabetismo contribui para que o homem permaneça no senso comum, estando sujeito à toda forma de alienação. Razão pela qual o processo do filosofar torna-se relevante para o fazer pedagógico. Alfabetizar pode significar a superação do senso comum, rumo a uma postura crítica da corporalidade. Vários acontecimentos do mundo das ciências, da filosofia, da produção e da política se entrelaçaram contribuindo para acelerar os processos de transformações político-culturais e para redefinir as imagens-memórias que dominarão o mundo Moderno europeu. 2.3.1- Momentos irreversíveis e ampliados nos corpos modernos Cadáveres,lixos e matérias fecais se amontoavam nas ruas medievais e continuaram a amontoar-se durante muito tempo, pois os odores que deles exalavam pouco atingiam a sensibilidade dos passantes, moradores e habitantes que com eles conviviam lado a lado, apesar da crescente tendência de separação que, até o século XIV, se dava de modo embrionário. A partir de XVII, entretanto, a separação assume um caráter de política pública contra o amontoamento.Estas políticas trazem em si um desejo de saber que também é poder, pois quer destinar um lugar e um tempo específicos para cada coisa. A esta pretensão vem responder os hospitais, as escolas, os presídios, os bairros populares, os salões de festas, os locais de trabalho, as calçadas, as ruas retas (Rodrigues, 1999:111) e também o quarto do casal, a latrina individual e outros lugares separados na organização social. Estes lugares se tornarão espaços de adestramento, de higienização, de demarcação e de maior controle das subjetividades. As cidades cresceram pelo afluxo ininterrupto de agricultores sem terra e também pela diminuição da morbidez e aumento da natalidade. Rodrigues (1999;106) nos conta que, em 1500, havia cerca de 80 milhões de pessoa no continente europeu e, em 1800, tal número mais que duplicou, beirando 190 milhões. Continua o autor: Em 1500, segundo dados de Fernand Braudel(1975), havia apenas quatro cidades com mais de cem mil habitantes (Istambul, Nópoles, Paris e Veneza), mas em 1800 havia vinte e três. Em 1700, mais de três quartos da população britânica ainda vivia no campo; em 1851, os habitantes da cidade eram maioria ( Thomas, 1988). Em Londres [...] contavam-se quarenta mil pessoas no século XIV e mais de um milhão no princípio do XIX.
  • 42. A velocidade das mudanças e das ruas se intensificou e o processo de transformação no mundo do trabalho fez afluir dos campos homens e mulheres, velhos, jovens e crianças para as cidades. Esses trabalhadores se amontoavam nas habitações medievais de um único cômodo ou dois, onde cozinhavam, dormiam, se lavavam e realizavam as práticas sexuais. Rodrigues (1999) nos ajuda a lembrar que, na Idade Média, a verbalidade relativa ao corporal ainda não havia sofrido a separação puritana e iluminista que inventou, para falar do corpo, uma língua respeitável (de elite) e outra bastarda(popular). O corpo medieval ainda não era objeto de um discurso moralista: era referido por uma fala singela, rica em conteúdo mítico, mas pobre de ‘isto-é- certo-isto-é-errado’ ou de ‘pode-não-pode’. Do corpo se falava também por meio de representações, de gestos e de canções lascivas, sempre se o concebendo com uma espécie de alegre obscenidade, materializada em um simbolismo que nos pareceria grosseiro. Do ponto de vista de nossa sensibilidade, o medieval seria antes de tudo um corpo ‘indecente’.(p.85) Todos juntos, velhos, adultos, jovens e crianças, vivendo uma corporeidade bem pouco limitada. Foucault (1988) nos conta que, até o início do século XVII, ainda vigorava uma certa fraqueza. As práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseira, da obscenidade, da decência, se comparados com os do século XIX. Gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos “pavoneavam”. (p.09) As cenas que hoje denominamos “privadas”, como evacuação, a lavagem das ‘partes’, o parto, a menstruação, a morte e as relações sexuais ocorriam em espaços não separados, pois não havia quartos individuais, de forma generalizada, e mesmo entre as pessoas mais abastadas, os leitos conjugais não eram separados dos outros ambientes, nem mesmo por cortinas. A palavra higiene ganhou nova conotação enlaçando a vida pública e a privada e ocupando um lugar inédito. Vigarello (1996), estudando os manuais de saúde, identificou a mudança de seus nomes e a “higiene” assumiu uma conotação de conjunto de dispositivos e saberes que favoreciam a manutenção da saúde. Uma cátedra de higiene foi criada na Faculdade de Medicina de Paris. Os medos e as inseguranças transformaram-se em insanidade mental, impotência, histeria e alcoolismo. Os
  • 43. amontoados passaram a ser identificados como espaços de contaminação; o mito da sífilis e de outras doenças consideradas hereditárias transformou o desejo e o ato sexual em “máquina infernal” e um certo pânico conduziu indivíduos da elite a uma tensão permanente, e a população em geral à angústia. Uma revolução aconteceu, quando as autoridades produziram uma cruzada para desodorização e limpeza das cidades, pois as populações resistiram, linhas de fuga e mecanismos múltiplos de burla e ocultação foram produzidos. Entretanto, para aumentar o controle, especialmente sobre os menos abastados, foram sendo criadas novas tecnologias institucionais. Na França, nos conta Rodrigues (1999), o cargo de intendente-geral da polícia, foi instituído em 1665 e, em 1757 se definiu um primeiro “código de polícia”, cujo objetivo era fazer que as pessoas vivessem “civilizadamente”, isto é, de modo cultivado, polido ou refinado, excluindo tudo o que parecesse bárbaro, irracional ou governado pela confusão. Polir (limpar), policiar (vigiar), ser polido(bem-educado), ‘política’(poder) pertencem ao mesmo campo semântico e se entrelaçam no mesmo processo histórico de vigiar, inspecionar, relatar, delatar, alertar, controlar, regulamentar, proibir, intervir, constranger...(1999:14) Foucault (1988) afirma que, na época clássica, houve uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder; nasceu um corpo que se podia manipular, ser treinado, tornar-se obediente, hábil e com uma quantidade multiplicável de força. Um corpo que podia ser impresso, tatuado pela racionalidade que se produziu dominante e que foi engendrando novas práticas corporais na cultura. Trompson (1991) nos conta que, ainda no século XVIII, havia uma forte presença de tempo de trabalho orientado pela obrigação profissional, pela tarefa a ser cumprida. Esta, na maioria das vezes, se organizava a partir do tempo da natureza e não do tempo do relógio. Relata-nos o autor que, em uma petição da cidade de Sunderland,em 1800, estão escritas as seguintes palavras: “considerando que esta cidade é um porto de mar em que muitas pessoas são obrigadas a estar a pé toda a noite para vigiaras marés e cuidar dos seus afazeres no rio”. Esta cidade se regulava pelo ritmo das marés; assim como outras, na época das colheitas, vivienciavam o trabalho de sol a sol, o que parecia “natural” numa comunidade de agricultores, pois a natureza obrigava a recolher o cereal antes que o mau tempo apareça(p.48). Contudo o autor nos afirma que a orientação do tempo pela tarefa tornou-se mais complexa quando a economia familiar e comunal se transmuta e inicia-se o processo de contratação do trabalho.
  • 44. Logo que se alugam braços de trabalho, a orientação passa a ser calculada pelo relógio (...) Esta medida do tempo expressa uma relação simples. Os que estão empregados experimentam a distinção entre o tempo do patrão e o seu “próprio” tempo.E o empresário tem de utilizar o tempo dos seus empregados, tem de fazer com que ele não seja desperdiçado. Já não trata de uma tarefa, o que pontifica é o valor do tempo reduzido a dinheiro. O tempo torna-se dinheiro – não passa, gasta-se. Assim, a imagem-memória de tempo se articulou à produção de riquezas, mas também à de disciplina corporal. O corpo precisava ser moldado para a produção no tempo e no espaço modernos que vai se constituindo. Descartes iniciou um caminho de registro anátomo-metafísico., uma racionalidade objetificante dos sujeitos corpóreos, que foi seguida por médicos, filósofos, cientistas e pedagogos. Surgiu um conjunto de regulamentos e de processos empíricos para controlar ou corrigir as operações do corpo, as operações políticas que se ocuparam tanto da submissão e da utilização, como do funcionamento e da explicação do corpo útil e inteligível. Para a produção do homem moderno não bastava apenas tratar do corpo de uma maneira geral; foram produzidas minuciosas táticas, forças de coerção sem folga, que buscaram tanto a economia e a eficácia dos movimentos, como uma nova organização interna da subjetividade. Foram sendo produzidas novas imagens-memórias de mundo e estas impressas a ferro e fogo nas subjetividades que se viam compelidas à transformação de suas práticas corporais. A Escola Moderna será identificada como uma das instituições externas à fábrica que deveria entrar nesta trama para imprimir, nos corpos da juventude, a imagem-memória do bom uso do corpo para melhor aproveitamento do tempo e do espaço. Um esquadrinhamento do tempo, do espaço e dos movimentos do corpo foi feito e em uma rede se articularam os vários disciplinadores da época com seus métodos, estudos e propostas de políticas públicas. Os processos disciplinares, que já existiam há muito tempo, se tornaram fórmulas gerais de dominação nos séculos XVII e XVIII, produzindo uma anatomia política do corpo. Prostíbulos, escolas, quartéis, hospitais, presídios, passaram a ser interpretados como necessitando de vigília constante das autoridades sanitárias e os sujeitos que transitavam nestes espaços, precisavam ser vigiados pelas autoridades internas. O contato entre os corpos deveria ser mínimo, e,
  • 45. para manter a saúde e o vigor físico, a atividade física transformou-se em uma nova verdade.Foucault (1987) nos fala que O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma <<anatomia política>>, que e também igualmente uma <<mecânica do poder>>, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. (p.127) A disciplina é compreendida como o caminho para fabricar corpos submissos e exercitados, corpos dóceis adaptáveis ao mundo moderno. Mas, o que é moderno? A palavra “moderno” foi empregada pela primeira vez no final do século V e marcava o limite entre o presente cristão e o passado pagão. Ser moderno, no entanto, foi assumindo uma conotação de transição do antigo para o novo e as idéias iluministas francesas, que atribuíram ao conhecimento cientifico os ideais de perfeição, colaram ao conceito de modernidade a imagem-memória de avanço seguro, rumo ao aprimoramento social e moral. O passado clássico romântico e tradicional deveria ceder lugar ao presente-futuro de desenvolvimento racional e técnico.Essa necessidade de avançar rumo ao futuro ajudou a confirmar uma noção de temporalidade igualmente destruidora e produtiva. O passado foi deslocado para o campo do ultrapassado; a busca incessante no presente passou a referir-se aos rumos do futuro. Essa busca, no entanto, foi feita a partir de uma subjetividade consumista que acelerou a história gerando um cotidiano produzido pela sensação de “falta do presente”. No mundo social intensificou-se a preocupação com a quantificação do tempo e a delimitação dos espaços. O relógio passou a mostrar os minutos expressando uma concepção de que, no conceito moderno de tempo, a precisão é fruto e flor para o desenvolvimento cientifico e tecnológico. A modernidade é o lócus da história do aprimoramento e da universalização do relógio, da cronometragem do tempo e também
  • 46. da ordenação dos espaços nas cidades. No mundo pré-moderno, havia um tempo local,majoritariamente regido pelos sinos das igrejas das vilas e pela demanda da natureza que representavam um critério muito elástico de tempo; as necessidades da corporeidade obedeciam ao fluxo da interação com a magia da natureza; e o trabalho seguia o fluxo das necessidades de manutenção do grupo familiar ( e do pagamento dos impostos). No mundo moderno, especialmente no industrial, o relógio passou a ser um critério rigoroso, mais preciso do tempo astronômico e mais diretamente articulado ao trabalho humano e à produção de riquezas. Thompson (1991) nos conta que Na última década do século XVIII abundávamos relógios; começava a pensar-se mais em termos de “necessidade” do que em “luxo”, até os camponeses poderiam possuir relógios por menos de vinte xelins.Não podem restar dúvidas de que se estava a assistir a uma grande difusão do relógio, ocorrendo (como seria de esperar) no momento exato em que a Revolução Industrial exigia uma maior sincronização do trabalho. (p.56) Vai sendo criada uma imagem-memória do tempo para organizar as práticas corporais, uma disciplina eu precisa ser impressa nos corpos, especialmente dos trabalhadores. Contudo, esta não foi de fácil imprinting na corporeidade dos ingleses de uma hora para outra, nem nas corporeidades dos europeus. Segundo Thompson (1991), os passos preliminares da Revolução Industrial levaram tanto tempo a definir-se que, nas zonas industriais do início do século XVIII, se criou uma cultura popular,licenciosa, que punha os cabelos em pé aos propagandistas da disciplina (p.67). As camadas populares inglesas eram vistas como degenerados, como vilãos, insolentes, preguiçosos, bêbados e pessoas que desprezavam a lei e a autoridade. Era preciso disciplinar a corporeidade daquela gente para que o progresso anunciado pela classe emergente se concretiza-se. Vários mecanismos vão sendo adotados para disciplinar o comportamento daquela população que resistia à cultura que precisa da disciplina para se faze poder.
  • 47. 29 O controle do corpo, a partir do controle do tempo e do espaço, se metamorfoseou da velha herança monástica e Foulcault (1987) nos conta que, na França, o controle do tempo se difundiu rapidamente a partir do modelo disciplinar que muito cedo foi encontrado nos colégios, nas oficinas e nos hospitais. Dentro dos antigos esquemas, as novas disciplinas não tiveram dificuldades para se abrigar; as casas de educação e os estabelecimentos de assistência prolongavam a vida e a regularidade dos conventos de que muitas vezes eram anexos. O rigor do tempo industrial guardou durante muito tempo uma postura religiosa; no século XVII, regulamento das grandes manufaturas precisava os exercícios que deveriam escandir o trabalho.(p.136) O tempo disciplinar medido e pago deveria ser um tempo puro, sem perturbações e de boa qualidade; para que isso acontecesse o corpo precisaria ficar aplicado à tarefa que lhe estaria destinada. O tempo disciplinar é um tempo integralmente útil em que a exatidão, a aplicação e a regularidade são virtudes fundamentais. Marx (1988), um homem que viveu no século XIX, quando desenvolveu suas análises sobre a mercadoria , falou-nos que a força conjunta de trabalho da sociedade, não abstante ela ser composta de inúmeras forças de trabalho individuais, passou a operar como força de trabalho socialmente média, contanto que na produção de uma mercadoria não fosse consumido mais que o trabalho em média necessário ou tempo de trabalho socialmente necessário. Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau social médio de habilidade e de intensidade de trabalho.(...) O valor de uma mercadoria está para o valor de cada uma das outras mercadorias assim como o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de trabalho necessário para a produção de outra. (...)
  • 48. A grandeza de valor de uma mercadoria permaneceria portanto constante, caso permanecesse também constante o tempo de trabalho necessário para sua produção.(p.48) Assim, Marx30 identificou, no próprio século XIX, uma articulação entre a produção, a mercadoria, o tempo e o trabalho e nos ajudou a saber um pouco mais sobre a formação da cultura moderna. Marx captou o espírito do que se tornou o conceito de tempo hegemonicamente presente tanto na sociedade como na ciência moderna. O tempo foi relacionado com a produção, com a geração de riqueza, time, nesta perspectiva, is money e, para produzi-lo, foi preciso que a sociedade e o pensamento de cada sujeito se disciplinassem, enquadrando forma de pensar e de viver no mundo com o paradigma científico-político dominante. _______________ 29 A máquina foi o instrumento usado pelo capitalista para reunir os trabalhadores em um mesmo lugar, onde seria possível controlar melhor o aproveitamento do tempo e das matérias primas. 30 No que se refere ao espaço, é indispensável destacar que a disciplina exige a cerca, que fecha em si mesma os iguais e separa os diferentes.Surgiu a localização funcional que buscou codificar o espaço arquitetônico. Os lugares se definiram para satisfazer não só a necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil. Produz-se como imagem-memória de lugar: o quadriculamento.Esta possibilita a localização imediata, pois coloca cada indivíduo no seu lugar e em cada lugar um indivíduo. Deviam-se evitar as distribuições por grupos; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou
  • 49. fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quanto corpos ou elementos há a repartir (p.131). A disciplina organizou um espaço analítico. A produção das novas impressões tece minúcias para penetrar o corpo e exercer sobre ele seu poder. Segundo Foucault (1987), define-se uma espécie de esquema anátomo-cronológico do comportamento, onde o ato é decomposto em seus elementos (p.138). O corpo e os gestos são postos em correlação e o controle disciplinar não consistirá simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; torna-se indispensável uma articulação entre um gesto e a atitude global do corpo, para se produzir uma condição de eficácia e de rapidez. Na escola, uma boa caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica – uma rotina cujo rigoroso código abrange o corpo por inteiro, da ponta dope à extremidade do indicador (idem, ibidem). O olhar detalhado das inspeções, o controle das atividades dos estudantes e dos professores, o estabelecimento dos lugares, das horas certas para fazer cada coisa, a determinação de fileiras para sentar e de filas para entrar ou sair da sala de aula são algumas das táticas desta anatomia política do detalhe sobre as práticas corporais. 2.3.2 – Sociedade, sistema escolar, conhecimento e imagens-memórias máquinas Na segunda metade do século XVIII, os reis já não governavam arbitrariamente e outras vozes se faziam ouvir na produção da vida governamental; e estas vozes não eram as do clero. Reis, como Luiz XIV, por exemplo, eram prisioneiros de processos sociais e dependentes de cliques e facções da corte, algumas das quais se prolongavam extensa e profundamente pelos pais e nos círculos da classe média (Elias, 1994c:97). Essa fisiocracia não se limitava apenas à economia, mas se inseria na vida política e social intervindo nas transformações e manutenções da cultura e se articulavam, especialmente na França, com os cientistas e com a burguesia comercial e industrial. A vida política nos Estados Modernos se enlaçou fortemente com os conhecimentos científicos e tecnológicos, mas também com a produção de novas práticas corporais que se articulam a uma moral disciplinar. Na sociedade moderna a racionalidade cientifica vai dominar, chegando mesmo a ser considerada como a única forma verdadeira de conhecimento, conforme já tratei na primeira parte deste trabalho.
  • 50. O Estado se assume como educador, baseando suas políticas públicas nos saberes produzidos neste mundo cientifico. As ações do Marques de Pombal, em Portugal do século XVIII, apresentam-se como bons exemplos desta articulação entre educação, Estado e ciência modernos. Realizando a primeira reforma do ensino, na Europa Moderna, Marquês de Pombal31, em 1722, antecipou as reformas que surgiram em outros países. Sua pretensão, além 31 de acabar com a hegemonia da Igreja na educação, era acabar com o verbalismo da cultura educacional portuguesa e fazer da universidade uma instituição voltada para a ciência aplicada. A nova universidade deveria voltar-se para a formação de uma elite renovada, capaz de identificar as riquezas naturais do Reino e explora-las. A nova universidade seria uma peça essencial ao projeto de tornar Portugal uma nação rica e próspera. A ciência passou, em Portugal a ser identificada com o saber da natureza colocado a serviço do progresso material. Paim (1982) afirma que a geração formada pela universidade pombalina estava preocupada exclusivamente com a formação técnica e somente desta iria cuidar quando o Brasil tornou-se sede da Monarquia. No processo da Revolução Francesa, a partir de 1789, no entanto, foi que se concretizou a idéia de uma escola laica, a cargo do Estado, não apenas na França como em diversos países europeus. Institucionalizou-se a instrução pública, transformando a
  • 51. seleção20 e a formação de professores para os estabelecimentos de ensino em uma preocupação, pois não se tratava apenas de dar a toda a população acesso ao ensino “primário”, mas de faze-lo conforme os ideais dos grupos no poder e a vontade de transformar a cultura popular urbana, ainda carregada de referenciais medievais, em cultura apropriada ao convívio urbano, no mundo do trabalho capitalista que se organizava. ____________ 20 Tanuri (2000:62)nos informa que Antes que se fundassem as primeiras instituições destinadas a formar professores para as escolas primárias, já existiam preocupações no sentido de seleciona-los. Os Estados Modernos vão se atribuindo a tarefa de educar a população. Manacorda (1996:247) nos conta que a frase da imperatriz da Áustria, Maria Teresa, em 1760 - a instrução é e sempre foi, em cada época, um fato político – marca a história da educação pública, pois a coloca como uma questão política do Estado. Na segunda metade do século XVIII, houve a supressão, de fato e de direito, das corporações de artes e ofícios, e também da aprendizagem artesanal como forma popular de instrução. Este duplo processo, de morte da antiga produção artesanal e de fábrica, dera espaço para o surgimento da moderna instituição escolar publica. Fábrica e escola nascem juntas: as leis que criam a escola de Estado vêm juntas com as leis que suprimem a aprendizagem corporativa(e também a ordem dos jesuítas). (Manacorda,1996:249) A escola do Estado, mesmo com um certo apoio das escolas clericais, não conseguiu de imediato assumir toda a população infantil. Podemos dizer que foram gerados dois campos diferenciados de infância, sem uma correspondência de classe social: de um lado, o das crianças escolarizadas e de, outro aqueles que, segundo hábitos imemoriais, entravam diretamente na vida adulta assim que seus passos e suas línguas ficavam suficientemente firmes(Áries, 1981:192). A população escolar não estava marcada pelos contornos das condições sociais como hoje a identificamos. As escolas populares eram freqüentadas por pequenos-burgueses e as classes iniciais dos colégios estavam cheias de pequenos artesões e camponeses, pois, até o século XVIII, havia uma escola única, onde os hábitos de escolaridade diferiam menos segundo as condições sociais do que segundo as funções desta. Contudo, ainda no século XVIII, a escola única foi substituída por um sistema de ensino duplo, em que cada ramo correspondia não a uma idade, mas a uma condição social: o liceu ou o colégio para os burgueses (o secundário) e a escola para o povo(o primário) (Áries, 1981:192)
  • 52. É importante, todavia, estarmos atento para o fato de que não houve uma programação prévia para estes acontecimentos dos séculos XVIII e XIX. Toda uma sensibilidade na relação da família com as crianças foi se alterando desde o final do século XVI. Surgiram sinais de uma nova relação com a criança nos meios mais abastados das cidades, mas não se tratava apenas de novas demonstrações de afetividade. Aparecia uma vontade cada vez mais reafirmada de salvar a vida, de tratar e sarar os filhos. Áries (1981) nos conta que entre o fim da Idade Média e os séculos XVI e XVII, a criança conquistou um lugar junto a seus pais, lugar este que não existia no período anterior cujo costume mandava que fosse confiada a estranhos. A criança tornou-se um elemento indispensável da vida cotidiana, e os adultos passaram a se preocupar com sua educação, carreira e futuro. Ela não era ainda o pivô de todo o sistema, mas tornara-se uma personagem muito mais consistente.(p.270). A demanda por cuidados, de início mais presente na área médica, se expandiu chegando aos aspectos pedagógicos. A partir do século XVIII, toda uma tecnologia é produzida para preserva a vida dos jovens e educa-los conforme os moldes que também estão sendo produzidos por essa nova civilização. Políticos, médicos, educadores, cientistas, padres e filósofos elaboraram e colocaram em prática múltiplas maneiras para conduzir esses jovens no caminho certo. O corpo jovem e individualizado separou-se do corpo dos adultos e, nas escolas, as crianças se tornaram objeto de estratégias e metodologias bastante especiais, inspiradas no rompimento com a velha pedagogia medieval, que era baseada na imitação e apropriada a uma sociedade em que todos se misturavam [...](Rodrigues, 1999:110) Os hábitos das classes dirigentes do século XIX foram impostos a todas as crianças escolarizadas; entretanto as práticas corporais ensinadas às crianças foram criadas por homens que não necessariamente as praticavam. Foi idealizado um novo homem e as impressões dessas imagens foram gravadas nos corpos infantis. As práticas corporais aprendidas na escola eram identificadas como hábitos das crianças bem- educadas, antes de se tornarem habitus de toda uma elite no século XIX e, pouco a pouco, do homem moderno das diversas condições sociais. Assim a escola dos séculos XVIII e XIX tem um forte componente moral, como nos conta Áries (1981). Uma nova noção moral deveria distinguir a criança, ao menos a criança escolar, e separa-la: a noção de criança bem-educada. Essa noção praticamente não existia no século XVI, e formou-se no século
  • 53. XVII. Sabemos que se originou das visões reformadoras de uma elite de pensadores e moralistas que ocupavam funções eclesiásticas ou governamentais. A criança bem-educada seria preservada das rudezas e da imoralidade, que se tornariam traços específicos das camadas populares e dos moleques. Na França essa criança bem-educada seria o pequeno-burguês. Na Inglaterra, ela se tornaria o gentleman, tipo social desconhecido antes do século XIX, e que seria criado por uma aristocracia ameaçada graças às public schools, como uma defesa contra o avanço democrático. (p.185). As imagens-memórias que possibilitaram a produção dessa educação que molda o corpo foram sendo geradas a partir do século XVI. As políticas governamentais do século vão assumindo a imagem do corpo como uma máquina que pode e deve fazer aquilo que é identificado como necessário ao mundo moderno. Assim, produzindo o enredo dos saberes sobre o corpo, vimos seu interior ganhar relevância com a descoberta do microscópio. A circulação sanguínea foi identificada por William Harvey (1578-1657);o sistema linfático e os glóbulos vermelhos forma vistos por Jean Pecquet (1622-1674). O corpo humano se tornou cada vez mais visível, por dentro e por fora, e esta visibilidade o apresentou como um marco de distinção sócio-cultural. Novas formas de ser vão aparecendo na sociedade européia e toda uma tecnologia é criada para ajudar a nova elite a assumir mais rapidamente comportamentos e posturas compatíveis com o mundo moderno. As imagens maquínicas de corpo foram sendo engendradas nos diferentes espaços do conhecimento. Vigarello (1995) nos mostra dos instrumentos corretores que proliferaram na medicina e que assumiram um caráter pedagógico; eram os espartilhos e os aparelhos de sustentação, que no final do século XVII, passam a ter a função de preservar e de modelar o corpo, pretendendo eliminar a deformação e firmar a postura, fixando-a. Essas ações convenientes que resultam da fixação paciente e calculadora de uma aparelhagem, essas silhuetas cujo cingimento meticuloso coloca em ação a educação, revelam até o nível do simbólico, uma relação tradicional com a infância. Pois a aparelhagem artificial é como o prolongamento de uma mão sonhando com a soberania suprema sobre o crescimento dos corpos. (Vigarello, 1995:26) Os aparelhos tornaram-se uma imposição, quase um elemento obrigatório, no final do século XVII e no século seguinte, para a correção dos jovens nobres e
  • 54. burgueses. São assumidos como uma precaução contra as deformidades, que poderiam ameaçar as crianças, ficando explicitas as marcas e as pressões de uma época que desejava imprimir no corpo jovem as marcas da diferença com a cultura medieval. Logo, essas tecnologias passam a ser aplicadas nos trabalhadores e em seus filhos, que deverão também adotar uma forma de ser que os inclua no mundo “civilizado”, como corpos capazes de superar os limites de seus “maus hábitos” e da “ natureza”, para tornarem-se adaptados às exigências do mundo do trabalho e à civilidade moderna. A formação do corpo se torna técnica de modelagem {até mesmo na dimensão tangível de um gesto, onde mão e aparelho chegam às vezes a se confundir }rever imagens de modeladores32
  • 56. ____________ 32 modelador Nós séculos XVIII e XIX, á imagem corpo máquina se agrega o modelo corporal baseado na termodinâmica, pois este é agora visto como um produtor de energia. Assimilado à combustão do carvão, um novo horizonte se apresenta como representação dos dinamismos orgânicos e da saúde. O processo respiratório representará um importante papel, pois se concluiu que a atividade física se realiza a partir da queima de material fornecido pelo sangue. No início dos Oitocentos, nos relata Vigarello (1996), as máquinas a vapor servem como referência analógica para idéia de corpo. É por seu modelo, mais ou menos consciente, que passa a codificação das eficácias corporais: a saúde supõe uma boa energia de combustão (p.191). Os trabalhos produzidos por Antonio Laurent Lavoisier33 (1743 –1794) foram importantes para essa nova perspectiva, pois suas conclusões de que na respiração elimina-se oxigênio do ar e exala-se gás carbônico possibilitou uma nova interpretação na relação trabalho corporal e respiração. 33 Antonio Laurent Lavoisier (1743-1794). Os seus estudos guiaram-se pela hipótese de que todos os fenômenos da Química se devem a deslocamentos da matéria. No Universo, tomado em seu conjunto, a matéria é sempre a mesma, pode mudar de forma, mas não pode aumentar ou diminuir. Dessa teoria surgiu seu principio bastante conhecido de que nada se perde e nada se cria. O instrumento usado por Lavoisier para demonstrar essa hipótese foi a balança: em qualquer reação química realizada em vaso fechado a aparência dos componentes pode mudar, mas o seu peso deve permanecer o mesmo.(Petra. 1999:112) Nesta rede de intrigas entre imagens-memórias de corpo e de saber, entram ainda Robert Koch (1843 – 1910), que descobriu, na Alemanha, o bacilo causador da tuberculose e Louis Pasteur (1822-1895), na França, cuja afirmação – todo organismo vivo provém de outro organismo vivo -, para a além de ir contra as memórias-imagens
  • 57. da Igreja, vai alterar radicalmente as imagens preponderantes entre alguns cientistas, que acreditavam na geração espontânea. Pasteur, pesquisando sobre a raiva e a doença que atacava a uva e o fumo, descobriu os micróbios; eles estavam por toda a parte e invadiam o corpo causando doenças. Os corpos são capturados pela rede do perigo invisível, porém ele demonstrou que aqueles que podiam causar doenças poderiam também ser mobilizados para evita- las. Suas pesquisas o levaram a produzir um processo de imunização, tanto para animais como para humanos, e pela primeira vez o corpo vivo será conscientemente invadido por outro corpo vivo. Também os trabalhos do Inglês Charles Robert Darwin34a (1809 –1882) vão se enredar na produção dos saberes que contribuirão para aprofundar em nossa memória a imagem de um corpo máquina. Por um fio, o princípio da seleção natural, pilar fundamental para o desenvolvimento da Biologia, contribuiu para a produção de uma discursividade que dominou, até bem pouco tempo, as ciências humanas. O livro de Darwin, publicado em 1859, foi uma das obras mais importantes até hoje escritas. De fato, “sobre a Origem das Espécies por Meio de Seleção Natural”, onde trata-se da apropriação do mecanismo de interação biológica que as diversas espécies animais e vegetais haviam evoluído no decurso de milhões de anos a partir de formas ancestrais relativamente simples, como também desenvolvia a hipótese explicativa da maneira como tal processo ocorrera. Em si, a idéia da evolução orgânica ou da transmutação das espécies não era interamente nova;ligavam-se a ela nomes tais como o do naturalista francês Lamarck34b e o de Eramus Darwin, avô de Charles Darwin. No entanto, o conceito de seleção natural, que explicava aquele processo, era original e de extrema importância, pois vinha dar fundamento à teoria – a sua estrutura lógica – tornando-a muito mais aceitável pra quem se interessava por Biologia e por História natural21. Assim, o pensamento lamarkista resume-se em duas leis: A lei do uso e desuso( segundo esta lei,quanto mais usadas as partes do corpo, mais elas se desenvolvem; em contrapartida, as partes não usadas vão se enfraquecendo, atrofiando- se , chegando a desaparecer); a lei da herança dos caracteres adquiridos( Essa lei postula que as alterações provocadas num órgão pelo uso e desuso são transmitidas aos descendentes). _____________________
  • 58. 21 Ecologia Humana. Bernard Campbell, edições 70.3 34 a Charles Robert Darwin 34b Lamarck. 34 a 34b Contudo, por outro lado, ele provou que homens e macacos tinham um antepassado comum, que éramos apenas mais um elo na evolução das espécies, e não seres especiais criados por Deus, para dominar a natureza. Desorganizando o território no qual a racionalidade vinha colocando o homem, ele trouxe mais um elemento de possibilidade e de insegurança para nossa cultura: a hereditariedade. Esta foi reduzida aos sinais de transmissão de doenças e defeitos, constituindo-se em mais um dos encaixes de corpo máquina. Esta máquina tornou-se agora uma máquina de informar, de transmitir ao informações, algumas desejadas e outras não. Para casar um filho ou uma filha, passou a ser preciso saber sobre o passado e os antepassados do pretendente. As informações dos médicos, dos padres e de pessoas conhecidas sobre o outro se tornaram valiosas. As famílias da elite construíram um jogo de espionagem e ocultação, pois todos queriam ocultar ou descobrir doenças físicas ou psíquicas que pudessem comprometer a geração de filhos saudáveis. Nesta guerra onde o corpo era atacado pelo ar, pela terra e pela água, só o comportamento de “civilidade” seria capaz de trazer-lhe paz. A idéia de civilidade passava tanto pela manutenção da limpeza dos espaços privados e dos públicos, como
  • 59. pela civilidade moral. Era indispensável a higiene pessoal, incluindo-se aí o controle dos gestos. A população, que se encantava com várias demonstrações públicas do que estava sendo produzido como saber tecnológico e científico nas academias de ciências, em geral não acreditava no que não podia ver. Mas a visibilidade das forças da “ordem e da limpeza” assusta. Tais forças passaram a mexer na vida privada de todos, especialmente da camada pobre da população que não tinha água encanada, latrinas individuais e cujas relações sexuais aconteciam ainda bem ao gosto dos tempos medievais. Ainda no final do século XVIII, o médico se aproximou do político, quando passou a desempenhar um papel na disposição das cidades e de diversos locais públicos. No século XIX a cultura da elite, especialmente a francesa, se tornou hegemônica e o ideal de vida burguês, um padrão a ser adotado por todos. E também o século da invenção do telégrafo, da ferrovia, dos trens, da energia a vapor de água e carvão, da eletricidade, do telefone, do raio X, da dinamite, da anestesia, da fotografia, do cinema, da psicanálise, da Coca Cola, do Leite Condensado da Moça, da Farinha Láctea, das lutas sociais, etc... As leis da termodinâmica, que já haviam demonstrado como a conversão do calor resultava em possibilidades efetivas de trabalho, produzem, na elite e em suas crianças, o culto à prática da ginástica e da respiração. Os banhos frios voltaram a ganhar destaque, desde que relacionados com a movimentação do corpo. Nasceu, para a elite parisiense, a natação no Rio Sena, que segundo Vigarello(1996), não é mais do que um lugar especial de tonificação (p.141). O corpo amarrado e apertado será considerado um erro pedagógico e médico, muito embora ele continue em voga até o início do século XX, mas agora acompanhado das práticas de educação física. O sujeito pode exercer sua força sobre os engenhos, pois, na lógica que estrutura o mundo burguês do trabalho, cada indivíduo passa a ter o comando dos esforços para sua correção na vida. A subjetividade assume um lugar privilegiado nas pesquisas científicas e mesmo na vida cotidiana. Endurecer o corpo e suas fibras por meio da ginástica e também dos banhos frios de mar, que não tardam a entrar na moda, exprime a
  • 60. vontade de produzir um organismo resistente e saudável, capaz de combater a indisciplina, no sentido lato deste termo. Apelos morais e científicos misturam-se. A moleza das carnes que o espartilho esconde se transforma numa indecência, antes desconhecida, acusando uma personalidade fraca e desprovida de vontade própria(Sant’Anna, 1996:251). O homem e a mulher modernos poderão/deverão modelar seus corpos a partir de suas forças internas; e ascendência de cada indivíduo deixa de ser uma garantia para desvendar a sua honra e predizer sobre o seu futuro. Será na aparência física que os olhares inquisidores, acerca dos segredos da subjetividade, serão depositados. Na era do supercrescimento das cidades, em que o fenômeno do anonimato se massifica, proliferam pequenos furtos, doenças e meios para que o indivíduo se distinga na multidão, acentuando o sentimento de identidade individual, elemento contraditório que nasce com a própria sociedade que está sendo bordada. Se, no século XVIII, constitui-se uma arte da produção de quadros vivos, no século XIX, ver-se o outro se torna uma das maneiras não apenas de se compreender na ordem do mundo, mas também de educar o olhar classificatório. As marcas nos corpos se tornam identificadores do lugar social do indivíduo, do lugar de cada cultura na evolução. Nesta época a Antropologia se constituirá como o lugar do estudo da diferença, tanto étnica como cultural.Sua fundamentação se baseia nos processos de observação, nomeação e exibição das diferenças. Dias (1996), a partir de um estudo na França, afirma que esta área do conhecimento, ao buscar legitimidade cientifica, tomou como modelo de referência a Medicina, agrupando todos os conhecimentos em torno dos fatos mais certos, os fatos anatômicos. Não havia uma crença positivista de uma objetividade quantificada, mas um esforço no sentido de evitar a intervenção subjetiva em um domínio onde o corpo era ao mesmo tempo modo e objeto de conhecimento. Na segunda metade do século XIX, a antropologia, tal como a arte, estavam confrontadas com questões semelhantes relativas ao problema da construção de representações realistas (Dias, 1996:35), sendo para isso necessário apresentar os objetos de uma maneira considerada “agradável aos olhos” e perceptível num “golpe de vista”. Essas idéias guiavam o modo de representar a realidade e um estudo das coleções e das exposições de ossos humanos, realizadas na segunda metade do século
  • 61. XIX, fez com que fossem identificados alguns dos pressupostos de uma determinada concepção da natureza humana. A aparente diversidade das coleções exibidas apenas servia para delinear melhor as fronteiras entre o homem e o animal e entre o homem ocidental e o Outro; servindo também para definir melhor o normal e o seu duplo, o patológico. No Muséum d’Histoire Naturelle, o modo de apresentação começava com “as raças humanas fósseis”, depois os materiais relativos às variedades fisiológicas e patológicas do esqueleto e do corpo, e, finalmente as raças humanas atuais (classificadas segundo uma ordem geográfica). Este modo de apresentação procurava evidenciar a unidade da espécie humana no tempo – dos homens fósseis aos homens atuais – e no espaço(as diversas raças eram apenas variedades no seio de uma mesma espécie). Percorrendo as diferentes salas e indo de uma vitrina outra, o visitante era convidado a seguir um percurso cronológico e geográfico, “começávamos pelos negros de cabelos lisos;acabávamos nos brancos”. (Verneau, 1898:334), percurso que fornecia um acesso visual e conceptual à longa história da vida humana na Terra. (Dias, 1996:39) O estudo da diferença racial e a constituição de coleções e de espaços reservados ao exercício do olhar datam também no século XIX, quando a noção de diferença se constitui, pois até será sobre o Outro – raça inferiores, mulheres, idiotas, anormais – que se debruçarão os estudos antropológicos até bem recentemente, procurando os caracteres diferenciais do crânio e da face dos grupos humanos objetivando colocar qual no seu lugar da série dos seres vivos. Para a nobreza européia dos séculos anteriores, ser diferente ainda não significava, necessariamente, ser menos. Podia significar ser um inimigo, mas as diferenças não eram identificadas como algo que faz parte do mau. Nietzsche(2001) nos ajuda a rememorar que “bom e ruim”, “bom e mau” têm origens distintas. O primeiro par nasce da valorização da forma de existência da nobreza e o segundo, da valorização da existência sacerdotal. Assim, ele analisa a primeira afirmando que O juízo de “bom” não provém daqueles aos quais se fez o “bem”! Foram os “bons” mesmo, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si
  • 62. e a seus atos como “bons”, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. (p.19) O modo de valoração nobre-sacerdotal identifica a guerra como um mau negócio, pois são fisicamente impotentes. Essa impotência lhes gerou um ódio sem igual e, partindo do que havia sido gestado dentro da nobreza, sobre si mesma, os sacerdotes produzem uma inversão nos valores aristocráticos e “bom, nobre, poderoso, belo, feliz e caro aos deuses” se altera. Os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são os bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança – mas vocês nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus,os cruéis, os lascivos, os insaciáveis , os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!...(p.26) Na sua impotência, o ódio tomou proporções monstruosas e sinistras. Assim, nos fala Nietzsche(2001), na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de espírito – comparado ao espírito de vingança sacerdotal, todo o espírito restante empalidece. A história humana seria uma tolice, sem o espírito que os impotentes lhe trouxeram. (p.25) A valorização sacerdotal cria, sobre todos aqueles que se diferem de sua representação do mau. Essa imagem-memória dos odiadores, impressa na memória de corpo daqueles que ascendem ao poder político e cultural, gera toda uma produção cultural onde o mal estará representado naquele que não se parece com o novo padrão em vigor. Alguns dos cientistas, como homens de sua época, não se questionam das origens destas e de outras noções morais, como o fez Nietzsche, no final do século XIX. Konder(1992) nos mostra, por exemplo, que era comum entre os homens europeus daquela época encarar como “naturalmente” universal tudo o que ali era produzido. Hegel, que foi professor de Marx, por exemplo, referia-se depreciativamente aos povos da África, da América e de vastas regiões da Ásia como “povos sem história”, pois, o europeu acreditava que sua forma de pensar era superior a de todos os outros povos. E o próprio Marx, na carta escrita ao jovem cubano Paul Lafargue, em 1866, explicita o quanto se identificava com a cultura européia de sua época. Assim, Konder (1992) nos relata que ele
  • 63. Mostrou-se preocupado com a situação econômica do então candidato a genro, e o admoestou: “Não queira fazer poesia em prejuízo da minha filha!”. Censurou-lhe com acrimônia o fato de toca-la, de fazer-lhe em público gestos de carinho: “ A meu ver, o verdadeiro amor se traduz na discrição, na modéstia e mesmo na timidez daquele que ama adiante de seu ídolo, e não, absolutamente, nas expressões soltas da paixão e nas demonstrações de uma familiaridade precoce”. Para concluir, num tom ameaçador: “Se você invocar o seu temperamento criolo, meu dever será o de impor a minha razão entre o seu temperamento e a minha filha. Se você, quando está na companhia dela, não souber amá-la de uma maneira que se compatibilize com o meridiano de Londres, precisará se resignar a amá-la de longe. A bom entendedor, meia palavra basta.(p.29) Buscando o mau nas marcas e expressões corporais nasceu a Antropologia Criminal. Conta-nos Collomb (1995) que está é produzida a partir de adaptações dos métodos de trabalhos da Sociétée d’Anthropologie de Paris, onde existia um campo de estudo gerado pelas preocupações com os diferentes aspectos da constituição física, dos fatores endógenos (raça, genética, hereditariedade, etc) e da atuação do delinqüente no ambiente físico e social. A fisiognomonia colocou o indivíduo com sendo indissociável da expressão singular do seu rosto, pois a aparência poderia revelar a essência de cada um. Sua associação à Antropologia Criminal produziu um conhecimento, pela aparência, sobre aquilo que estava invisível no ser: suas emoções, seus desejos, suas “taras”. Pretendia-se um aprofundamento na leitura das paixões humanas, um cálculo prévio, através da leitura do ser humano por meio do desenho exterior do seu corpo. Uma rígida hierarquia dos órgãos e das partes do corpo humano participava dessa decifração das aparências. Esta se apoiava no imaginário científico que havia feito do cérebro a sede da existência. As proporções do cérebro e as expressões do rosto transformaram-se em chaves para desvendar as razões que explicavam os talentos e os defeitos pessoais. A contemplação da subjetividade, que se acreditava estar estampada na aparência, junto a uma vontade de aparentar pertencer à elite, coincide com a promoção de um olhar que se quer documental e, sobretudo, capaz de participar dessa nova sensibilidade do olhar, que concede ao rosto um lugar de destaque. Alías, lugar que, até a pouco, não se tinha como um pouso para os olhos, que preferiam os seios, as nádegas ou os pés. Santa’Anna(1996) relata que
  • 64. Com Louis-Jean Marie Daubenton (1716-1800), um dos primeiros a fazer do crânio um objeto de estudo privilegiado, o que se observa é a legitimação da tentativa de relacionar o físico à moral, uma ciência das correspondências entre a subjetividade e a parte superior do corpo, entre o cérebro e as emoções.(p.252) A fotografia e o espelho se vulgarizaram contribuindo para a construção da corporeidade moderna. Sant’Anna (1996) nos lembra que depois de conquistar as terras distantes, a natureza e outras culturas, o europeu foi impelido a conquistar o próprio corpo, e, dentro dele, um novo universo que não cess[ou] de ser descoberto (p.250). 2.3.3- Violação nas imagens-memórias de corpo máquina A noção de tempo absoluto e a angústia de chegar logo às conquistas do futuro fizeram dos homens e das mulheres pequeno-burgueses do século XIX indivíduos solitários e angustiados. Para a maioria da população, no entanto, a luta pela sobrevivência era por demais penosa. A miséria de muitos contrastava com a crescente capacidade acumulativa de outros. O saber estava em identificar as possibilidades de melhoria individual de sua vida privada e a de sua família, agora, nuclear. O saber estava do lado de fora do corpo, corpo este que devia ser domado para cumprir as exigências político-culturais de uma época. As formas científicas de leitura do mundo passam a dominar e a que vai hegemonizar a racionalidade identificará, na neutralidade do observador, a possibilidade de descoberta da verdade. O aleatório, a subjetividade e as impurezas são rejeitados na produção dos saberes sobre o mundo, o qual se consolida sob a hegemonia da razão capitalística que, por sua vez, gera imagens-memórias dominantes de ciência que se agregam em nossa corporeidade como fiapos de uma política de manutenção do status quo. A educação assumiu um papel preponderante que, junto de outros mecanismos culturais, não só gravaram, na corporeidade da população, imagens-memórias da nova classe dominante, como também buscaram manter vivas as várias formas de dominação, sem a necessária presença do controle permanente. Os saberes e os poderes
  • 65. das elites político-culturais foram assumidos como os válidos, os verdadeiros para a maioria da população. Homens e mulheres participaram ativamente desse processo de produção de políticas que urdiram a cultura moderna e a arte de modelar corpos dóceis. Contudo, será dentro da própria racionalidade cientifica que aparecerão os questionadores desta cultura que se fez poder. Ainda no século XVIII eram apontadas algumas das principais contradições presentes da nova forma de organização político-cultural, pois a miséria a que estava sujeito o proletariado não condizia com o aumento da capacidade de produção da sociedade. O próprio liberalismo político encontrava antagonismos com as práticas do liberalismo econômico. Muitos denunciavam o trabalho infantil e das mulheres nas fábricas; outros defendiam a melhoria das instalações sanitárias nas fábricas e nos bairros proletários vislumbrando uma melhoria para a saúde dos trabalhadores e de seus filhos. Alguns, por compreenderem esses como pessoas humanas, outros, por verem, na melhoria da sua qualidade de vida, uma possibilidade de melhoria na produção e outros, ainda, por identificarem, naqueles sujeitos trabalhadores, homens da nação. Contudo, as mudanças mais concretas se fizeram quando, em diferentes espaços do mundo, os operários iniciam organizações para a defesa de seus direitos, rebelando- se, mas também produzindo alternativas. As revoltas operárias, em diferentes atividades industrias, nos vários espaços europeus, colocam em cheque as imagens-memórias dominantes. Estas são durante questionadas, se adensam as criticas e os movimentos contrários à exploração do trabalho de mulheres e de crianças. A identificação das relações de poder começa a gerar novas produções, especialmente no campo das ciências sociais. Homens com formação cientifica, como Proudhon, Fourtier, Bakhtin, Robin, Engels e Marx, ajudaram na identificação dos mecanismo dominantes nas políticas que apropriavam os trabalhadores de si mesmos e de seus saberes, e na produção de propostas para a superação da dominação. Proudhon via na educação popular capitalista uma educação para a servidão, que procurava manter as massas na ignorância, ensinando-as a obedecer e a servir, para manter a supremacia das classes dominantes (p.4 9). Na interpretação de Nogueira (1990), Marx e Engels viam a educação como arma importante para que o trabalhador conseguisse não apenas ter
  • 66. acesso ao saber, mas que possa ainda chegar a controlar o processo de produção/reprodução (as condições de transmissão) dos conhecimentos científicos e técnicos (p.91). Partindo das muitas críticas e práticas que estavam sendo implementadas, Marx e Engels, vivendo no auge desta modernidade, organizaram e contribuíram para dar um novo sentido às resistências proletárias. Invertendo a lógica hegeliana, na qual o mundo se formaria no pensar, eles afirmaram que a sociedade é produzida pelos homens e que estes se produzem dentro das condições históricas que encontram. Apontando uma essência de classe nos conhecimentos, procuraram romper com a lógica de um saber que se percebia como único, neutro e objetivo. Nas ciências sociais esta lógica estava presente no positivismo de Auguste Comte, que propunha uma física-social, fundamentando-se sobre duas premissas estreitamente ligadas. 1) a sociedade pode ser epistemologicamente assimilada à natureza (o que nós chamaremos de “naturalismo positivista”); na vida social reina uma harmonia natural; 2) A sociedade é regida por leis naturais, quer dizer, leis invariáveis, independentes da vontade e da ação humana. Por essas premissas se conclui que o método nas ciências sociais pode e deve ser o mesmo que o das ciências da natureza, com os mesmos métodos de pesquisa e sobretudo com o mesmo caráter de observação “neutra”, objetiva e desligada dos fenômenos. (Lowy, 1985:10). Neste projeto de ciência social, estava explicita uma visão natural da dominação dos mais capazes sobre os menos capazes, não havendo o que fazer para transformar a ordem das coisas. A racionalidade cotidiana estava permeada por um desejo de argumentação que convencesse a todos do equilíbrio social que a burguesia havia conquistado, colocando-se contra os sonhos revolucionários utópicos e negativos, o positivismo enaltece a aceitação passiva do status quo social. (idem, ibidem). Muitos dos interpretes de Marx e Engels, no entanto, vão assumir a essência de classe como o único critério para a produção do saber-verdade e desarticular da sua produção a pluralidade; a práxis se perde como produção de saber e se esvazia de conteúdo. Marx e Engels localizaram na classe operaria a possibilidade de uma nova revolução social e identificaram na consciência de classe para si o caminho para romper com a dominação da burguesia. Marx e Engels foram críticos contundentes de alguns
  • 67. elementos daquela cultura, mas se esqueceram, ou não viram, de que eles próprios eram sujeitos corpóreos de seu tempo. Marx foi um crítico à ciência das duas últimas décadas do século XIX; apontava sua tendência pragmática e uma confiabilidade exacerbada em suas verdades, que mistificavam e produziam saberes “imparciais”, “descomprometidos” e postos acima da história. Com certeza de ter chegado ao seu destino de sucesso, as forças político- cientificas da burguesia, mais destacadamente o liberalismo econômico e o positivismo nas ciências sociais, trabalharam juntas no sentido de perpetuar a imagem-memória de que o trabalho incansável é a forma para se atingir mais rapidamente o futuro. A produção se apodera do presente-futuro, e mesmo as imagens-memórias produzidas por alguns questionadores da sociedade burguesa não se desvencilharam de uma noção necessária do controle do corpo nela mente para que se chegue ao futuro prometido. A modernidade se concretizou na busca repetida de um tempo que viria e esse tempo seria de fartura, em face da capacidade produtiva de hoje-amanhã. Em seus escritos partilhados com Engels, aparecem traços da sua relação com o corpo, no qual apontam, como primeiro pressuposto para a existência humana, e, portanto, para a história, a necessária condição de o homem estar vivo. Para viver, disseram eles, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais (1989:39). Talvez eles devessem nos ter dito quais eram estas algumas coisas mais, porém não o fizeram, não obstante estarem vivendo o tempo da discursividade e do olhar sobre o corpo. Logo a seguir explicitam que satisfeita esta necessidade, a ação de satisfaze-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades – e esta produção de novas necessidade é o primeiro ato histórico (p.40). Apresentam-nos,ainda, o que chamam de terceira condição que intervem no desenvolvimento histórico: o fato de os homens se renovarem diariamente, renovando, assim, sua própria vida, quando começam a criar outros homens, a procriar (p.41), gerando com isso uma dupla forma de produção da vida: “De um lado, como relação natural, de outro como relação social- social no sentido de que se entende por isso a cooperação de vários indivíduos, quaisquer que sejam as condições, o modo e a finalidade (p.42). Sendo, assim, há uma conexão materialista dos homens entre si, condicionada pelas necessidades e pelo modo
  • 68. de produção (idem,ibidem) tão antiga quanto o próprio homem. Continuam a nos dizer que a consciência é como um outro elemento que também constrói a história e que esta consciência é “contaminada” pela matéria, apresentando-se sob a forma de linguagem. Eles concluem que a linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens, portanto, existe também para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da carência, da necessidade de intercâmbio com outros homens.[...] A consciência, portanto, é desde o início um produto social, e continuará sendo enquanto existirem homens. (p.43). A linguagem não é apenas a falada e a escrita, a linguagem é também a dos gestos, das expressões que interagem com os outros sujeitos concretos que povoam o mundo da existência. O “penso, logo existo”, de Descartes, é invertido na formação proposta por Marx e Engels. A existência material do homem é que vai formando, constituindo a existência de uma consciência que não se sobrepõe a nada, que não é “pura”, mas “contaminada” pela materialidade da existência social, pela busca por satisfazer suas necessidades, que geram outras. A consciência é também constitutiva do ato de conhecer e se produz na interação com outros homens, pois o homem se constitui homem na interação social, embora ele seja também parte da natureza. O panorama no qual Marx e Engels viveram, as cidades européias, poderia ser descrito pelo ar repleto de gases produzidos pelas industrias, de poeira produzida pelas obras e pelas rodas dos carros, que faziam dos corpos vultos para o passante que agora conta as horas no relógio. Já não tendo controle sobre seu tempo, pois seria o apito da fábrica que marcaria o início da sua jornada de trabalho e a possibilidade de manter-se alimentado e com moradia, corporificou-se um novo tipo de sujeito e a conscientização de sua existência transformou a Europa em um caldeirão fervente, no pesadelo dos políticos e dos administradores burgueses. Com a burguesia industrial nasceram o proletariado industrial, a identificação dos mecanismos de exploração de sua força de trabalho e as formas de resistências e de controle. Lowy(1985)nos aponta como principais críticas de Marx à desumanidade do capitalismo: a alienação, onde o processo de produção domina os homens e não os homens o processo de produção(p.68); a degradação física dos trabalhadores, a partir do relato de médicos e de inspetores de fábricas que revelam a subalimentação, as
  • 69. doenças, as condições de vida e de trabalho degradantes, a morte por excesso de trabalho, a miséria no sentido absoluto dos trabalhadores em geral, e das mulheres e crianças em particular(p.69); e a degradação intelectual e moral dos trabalhadores, pois ele lhes rouba o tempo necessário à educação, a desenvolvimento intelectual, às relações sociais (p.69). Marx ensinou-nos a ler o mundo segundo uma hermenêutica de suspeição e, ao contrário de outros fundadores das ciências humanas, atribui à classe operária, não só o interesse, mas também a capacidade de transformar por inteiro a sociedade capitalista através da ação revolucionária. Para ele a sociedade nasceu pela estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho, divisão social do trabalho, divisão social das riquezas, divisão social do poder econômico e político, que concentrava na mão de alguns poucos as riquezas, o saber, os bens, as armas e as terras, enquanto outros não possuíam nada disso. Essas idéias universalizaram o proletariado. Se, por um fio, rompeu-se com a lógica de uma ciência que privilegiava a mente ao corpo, o pensar ao fazer e que se propunha neutra, por outro, a multiplicidade presente na classe proletária parece ter recebido a atenção necessária. Fragmentos que identificam e singularizam não foram compreendidos como relevantes. As produções que surgiram a partir do pensamento de Marx influenciaram o mundo. É inegável a importante presença de sua mãos na tapeçaria das possibilidades de interpretação e critica do mundo burguês. Seu trabalho possibilitou-nos leituras sobre como o pensamento de uma classe foi tramado formas de produzir conhecimentos, de ser, de sentir, de agir e de olhar o corpo. Ele nos ajudou também a identificar e a produzir mecanismos de resistência com seu potencial para a rebeldia. Marx e Engels viveram e compartilharam saberes e, assim como outros, foram capazes de identificar algumas imagens-memórias e de produzir algumas leituras importantíssimas de uma época. Partindo de outros referenciais, mas também incomodado pelo que acontecia em seu tempo, veremos aparecer, no cenário cientifico, figura de Freud.
  • 70. 35 Elias(1994a) nos lembra que no processo civilizador a psique do homem foi se alterando e que a contenção dos gestos conduziu esta alteração. Uma outra cultura se fez neste processo e desaguou na Modernidade do século XIX carregando um rio de memórias de outras épocas e de refreamento das pulsões. O homem moderno foi produzido na cultura e a produziu por aceitar e incorporar as transformações que estavam sendo propostas por alguns grupos.As produções para o controle de si tramaram uma discursividade que atuou sobre os processos de individualização engedraram nos sujeitos do século XIX, para além de novas práticas corporais, novos sofrimentos: foi produzido um mal-estar na civilização. A complexidade da nova sociedade e, como afirma Corbin (1991), O esforço de cada um para construir sua própria personalidade e a influência do olhar do outro estimulam o descontentamento, até a difamação de si; e deságuam no sentimento de insuficiência.[...] O caráter competitivo da existência conduz ao esgotamento, aumenta a preocupação profissional. Para o indivíduo formado desde a infância na intimidade com os testes, cresce o temor do fracasso, a necessidade de uma perpétua adaptação, a angústia do abandono podem gerar certo medo de viver.(p.563) Pesa sobre os espíritos dos jovens da elite um certo sentimento de culpa em relação a si mesmos, e o triunfo da nova ciência da moralidade tende a provocar mudanças no olhar com que cada um fita se próprio corpo e o corpo do outro. A interdição e a curiosidade entram na ordem do dia. Os mecanismos de controle sobre o
  • 71. corpo das jovens e das senhoras ajudaram a produzir as histerias e as alcoólatras em todas as classes sociais. Mas não somente entre as mulheres o alcoolismo cresceu na Europa; homens e mulheres de diferentes classes culturais e de variadas idades passaram a consumir bebida alcoólicas em grande quantidade, e o fumo passou a integrar o cotidiano de homens e mulheres. A solidão tornou-se uma marca no corpo moderno, um corpo que a racionalidade cartesiana havia separado da mente e dos afetos. O número de suicídios cresceu muito a partir do meio do século XIX, podendo ser interpretado tanto como um reflexo do sofrimento individual de vergonha por atos que marchavam a dignidade individual ou de sua família, como também devido à angustia produzida pela perda dos referenciais. Cresceu o número de identificação de pessoas com doenças psíquicas, de perversões e a ligação destas com o sexo. Foucault 91988) nos conta que __________________ 35 Sigmund Schlomo Freud nascido a 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Moravia, filho de pais judeus, aos 4 anos foi para Viena, onde recebeu toda sua educação e viveu quase toda a sua vida. Na escola secundária o Gymnasiu, foi o 1º aluno da turma durante vários anos, o que o colocou numa posição privilegiada. Freud morreu a 23 de setembro de 1939, aos 83 anos em Londres. O acontecimento mais discreto na conduta sexual – acidente ou desvio, déficit ou excesso – é, supostamente, capaz de provocar as conseqüências mais variadas, ao longo de toda a existência; não há doença ou distúrbio para os quais o século XIX não tenha imaginado pelo menos uma parte de etiologia sexual. Dos maus hábitos das crianças às tísicas dos adultos, às aploplexias dos velhos, às doenças nervosas e ás degenerescências da raça, a medicina de então teceu toda uma rede de causalidades sexual. (p.64-5) Proliferaram estudos e formas de catalogar os diferentes “desvios de conduta”, e os médicos alienistas – bem parecidos com o personagem de Machado de Assis -, a pretexto de dizerem a verdade, atribuíam às menores oscilações de sexualidade uma dinastia imaginária de males fadados a repercutirem sobre as gerações e sobre a sociedade inteira. Pretendeu-se que se acreditasse até mesmo nos perigos de hábitos furtivos dos tímidos e nas pequenas e mais solitárias manias. A partir das expressões corporais que passaram a ser anotadas como sintomas, seguia-se uma análise das razões que levavam o sujeito a agir daquela maneira. Esta nova forma de observar o corpo fez surgir as figuras do “invertido”, dos fetichistas de todos os matizes, do “exibicionista” e do “zoófilo” (Corbin, 1991) que foram catalogados como possuidores de patologias da “loucura moral” e da “neurose genital”. A busca de sinais e informações no corpo se
  • 72. intensificou focalizando nos prazeres insólitos nada menos do que a morte: a dos indivíduos, a das gerações, a da espécie ( Foulcault, 1988:54). Fazia-se necessário tirar o diabo do corpo, para purifica-lo, fosse com água e sabão ou nas seções de psicanálise, onde esse pudesse ser auscultado, medido, esticado e analisado por um outro indivíduo que fazia anotações detalhadas de suas características. Era preciso inquirir sobre tudo, guardar as informações para checa-las. Era indispensável obter todas as informações que o sujeito examinado tinha a dar.